quinta-feira, julho 20, 2006

É claro, Pati.

Saibam todos que este Blog estará sempre à disposição dos amigos para todo e qualquer tipo de colaboração, participação, etc, dêm o nome adequado. A primeira colaboração, por sinal, vem de um amigo muito querido. Há muitos anos vivendo no Sul Maravilha, Carlos Cordeiro de Mello está entre os dez melhores contistas de Pedra de Guaratiba. H.C.

Carlos Mello

Separar da mulher perto de completar trinta anos de casamento é uma loucura. Fiz tudo para evitar esse desfecho, até entender que ela não queria mais, de jeito nenhum. Cansou de tudo, da minha eterna instabilidade, das minhas piadas, do meu nariz e provavelmente do meu ronco noturno. Nos primeiros dias, que pareceram meses, fiquei em estado de catatonia profunda, a andar de um lado pra outro dentro de minha casa – doravante tinha de chamar de “minha casa” o quarto-e-sala que aluguei às pressas no Humaitá, no último andar de um espigão de elevadores rangentes. Fiquei lerdo, deixei crescer a barba, as unhas, o cabelo. Cada vez que olhava para o telefone, meu coração dava pinotes, na esperança de um telefonema de reconciliação. Outras vezes ficava a imaginar: de repente tocam a campainha, vou ver, é minha mulher, meus filhos, com uma garrafa de champanhe, vieram me buscar, vamos comemorar os 30 anos de casamento! Mas telefone e campainha permaneceram mudos.

Nesses transes da vida, o melhor remédio é o tempo, ou, melhor dizendo, a certeza de que o tempo vai comendo a vida até que um dia a gente rebenta e acaba tudo. A não ser que se volte, noutra encarnação, mas sem memória passada, para cometer os mesmos enganos, levar as mesmas sarrafadas. Ou vá para o céu, ou o inferno, ou o purgatório, qualquer coisa era melhor do que aquele estado de prostração absoluta, entremeado de momentos de desespero. Um dia, decidi: não posso ficar eternamente assim, vou dar um jeito na vida. Fui à janela, olhei para baixo: e se eu pulasse? Não ficava tudo resolvido? Nesse instante um carro amarelo ia saindo do estacionamento, lembrei da Jaquita, velha amiga de tantos anos, que tinha um carro daquela cor. Ela ficou surpresa com meu telefonema, ainda mais com o divórcio. “Passo por aí, vamos conversar”. Chegou e foi logo dizendo: “Você está muito feio, vá tomar banho, vamos sair”.

Se há, entre os meus improváveis leitores, algum infeliz que se encontre em situação análoga, aconselho-o a recorrer a uma velha amiga que não vê há muito tempo. É um remédio santo. As mulheres são piedosas, prestimosas e adoram dar ordens a homens deprimidos. Fomos a um shopping, ela me empurrou para os braços de um cabeleireiro, saí tinindo. Dali fomos a uma loja, e mais outra e outra ainda, já estava com umas cinco sacolas de compra, o cartão de crédito estourado e vários pré-datados nas mãos dos lojistas. Voltamos para casa, ela arrumou tudo, preparou uma pizza, abriu uma cerveja, acabei enlaçado em seus braços, era o mínimo que podia fazer, pôxa! Quando acordei, ela tinha ido embora. E com ela foi-se a tristeza, resolvi assumir minha nova condição, totalmente destreinado e fora de forma para o mundo dos solteiros.

Precisava de companhia para sair, é claro. Mas todos os meus amigos estavam casados, suas mulheres me olhavam desconfiadas, eram amigas da minha ex-mulher, descartei logo essa hipótese. Um estagiário do escritório convidou-me para uma happy hour na sexta-feira. Foi horrível! Não consegui acompanhar o ritmo das pessoas, todas me pareceram frenéticas, ansiosas. Fiquei tonto com a bebida e a fumaça de cigarro, o rapaz enturmou-se com uma gordota, queriam arrastar-me a outro bar. Voltei para casa. O desespero estava me esperando, o safado, pegou-me pelos cabelos, tive de tomar uma bola para dormir. Fui despertado pelo telefone, era a Jaquita, queria me apresentar a uns amigos, papo cabeça, gente da minha geração, íamos almoçar numa praia de Niterói, depois metia-se um cinema. Você é uma santa, Jaquita! Que Deus lhe pague!

Essa turma sim, gente culta, educada. Mas não tinha ninguém para mim. Dois casais, a filha de um deles, chamada Pati, e a Jaquita. Pensei: é necessário ser novamente grato a Jaquita, mas até quando? No cinema, sentei ao lado da Pati, comi um pouco da pipoca dela e adormeci profundamente. Todo mundo riu muito do meu sono, fomos tomar café. A Pati formou-se em psicologia, quis saber se eu podia emprestar-lhe um livro do Freud. “É claro, Pati, mando pela Jaquita” Senti que ela não gostou. Seriam inimigas? Pediu meu telefone, eu escrevi num pedaço de papel e esqueci o assunto. Daí a uns dias ela me ligou, perguntou se podia passar para pegar o livro. “É claro, Pati, até hoje se quiser”. Passou no outro dia com o namorado, um magrelo altão e com jeito de bicha. Pegaram o livro e se foram.

Na sexta-feira seguinte, assim que entrei em casa, o telefone tocou, era ela. Queria convidar-me para ir ao teatro, aceitei. O chato do namorado não estava, tinham terminado. Menos mal. Na saída, encontramos uns amigos dela, saímos para tomar chope. Eu parecia um velho patriarca, cercado pelos filhos. Seria de esperar que pagasse a conta como forma de remunerar aqueles jovens por me terem concedido sua companhia? Nada disso, cada um pagou a sua. Mas não iam separar-se, a noite mal começara. Disfarcei um bocejo, diabo de sono, vou tomar um café para acompanhar esse pique. Fomos para uma espécie de boate ao ar livre, na Lapa, tive a impressão de estar em outra cidade. Como tudo muda aqui, literalmente da noite para o dia! Não sabia que nesse lugar decadente, por onde passei tantas vezes de dia, apressado e temeroso, havia essa festa à noite. Fomos a outros bares, bebericando, conversando, ouvindo música. E nessas idas e vindas, pela rua, de repente me vi de mãos dadas com a Pati.

O dia amanheceu, resolveram ir tomar café em um hotel próximo, lá fomos nós. No banheiro, fiquei horrorizado com minha cara macilenta, os cabelos mal penteados, um ar envelhecido. A Pati e os amigos pareciam ter acabado de acordar, cheios de vida, sem uma ruga, um bocejo. Achei melhor ir embora. A Pati não gostou, falou que não precisava de carona, os amigos iam levá-la.

- Você deve estar cansado, a gente ainda vai zanzar por aí.

“Por que não morro logo de uma vez?”, amarguei no caminho para casa. Suprema humilhação, achei que tinha entrosado com eles, levo um balde de água gelada na cara. “Você deve estar cansado”. Podia ter acrescentado “velho como é”. Bem, eles são jovens mas um pouco tolos, falam e riem ao mesmo tempo, parece que estão sempre querendo gozar alguém. Mereço companhia melhor. Ah, malditas uvas verdes…

Palavras que consolam, nunca consolam ninguém. A verdade é que eu estava só, irremediavelmente só. O pessoal da minha idade ou está casado ou é muito chato. Os jovens não precisam de mim. Voltei a acalentar a idéia da morte chegando de mansinho, levando-me pelos ares. Foi toda uma semana de tristeza, solidão e televisão, esse bendito invento que concede uma espécie de fuga de segunda mão aos solitários. Estou no fim. Sábado de manhã, resolvi ir à feira, perto de casa. Já na porta, voltei para atender ao telefone. Era a Pati:

- Ôi, sumido! Ficou chateado com a gente? Meus amigos gostaram muito de você. Por que não me telefonou? Não tem meu número?

- Andei muito ocupado essa semana. Como vão seus pais?

- Ótimos. O que você vai fazer?

- Hoje à noite?

- Não, agora.

- Agora estava saindo para ir à feira. Por quê?

- Adoro feira, posso ir com você?

- É claro, Pati.

-Então passo já por aí, estou perto de sua casa.

Corri ao banheiro, lavei o rosto, escovei os dentes, penteei o cabelo. Estava acabando de trocar de roupa quando ela chegou. Linda, de jeans, camisão de homem, cabelos presos. Fomos à feira, ela comprou um monte de legumes, ia me ensinar a preparar um suflê. Passamos na padaria, comprei pão, duas bombas de chocolate, uma garrafa de vinho.

- É melhor levar duas, eu bebo direitinho.

Peguei mais uma, lá fomos nós. Ela fuçou as estantes, separou mais alguns livros.

- Posso olhar seu armário?

- Claro, Pati, sinta-se em casa.

- Que camisa linda, quem te deu?

A pergunta era engraçada. Fazia supor que eu fosse incapaz de comprar uma roupa bonita. Ia dizendo “Foi minha mulher”, mas emendei:

- Foi a Jaquita. Quer dizer, foi ela que escolheu.

- É bonita. Posso experimentar?

- Claro, Pati.

Ela despiu o camisão sem qualquer cerimônia, vestiu minha camisa. Ficou linda, qualquer coisa fica linda nela. Disse-lhe isso, com a voz a tremer. Ela fez menção de tirar, não deixei.

- É sua. Faço questão.

- Obrigada.

E meu deu um beijo.

Quem sou eu? Um velho depravado que se aproveita de mocinhas? Um velho solitário, a quem de repente foi dada a graça de uma namorada jovem? Um velho sonhador e romântico, que cuida haver conquistado um coração irrequieto como o da Pati? Um velho bobo, que qualquer garota pode levar na conversa e cardar à vontade? Eu continuo saindo com ela e os amigos, pago a maior parte das contas, dou-lhe presentes. Um dia falei na Jaquita, ela cortou curto:

- Não sei se você já transou com ela, não me interessa. Mas não quero que telefone para essa mulher.

- Por quê? Não gosta dela? É apenas uma velha amiga.

- Velha amiga, eu sei… Pois não quero! Tenho ciúme, sim. E daí? Não quero, e pronto.

O tempora, o mores, como diria o velho e caturra Cícero. Noutros tempos, uma cena de ciúmes como essa me levaria ao paroxismo. Algumas vezes tive ganas de bater na minha mulher, sobretudo quando o ciúme era de umas coroas horrorosas, uns dragões que andaram cruzando meu caminho. Isso era uma bofetada em meu amor-próprio. Mas agora, que suave gozo, que terna alegria! Tinha vontade de beijar os pés da Pati. Com ciúmes do velho, ora vejam só! Ela continuava olhando para mim, intimativa. Eu abracei-a por trás, abri os botões de sua camisa, acariciei-a, beijei-lhe a nuca. E murmurei, aboborado de gozo:

- É claro, Pati.

Nenhum comentário: