quinta-feira, julho 20, 2006

Os Horrores do Mundo

Clemente Rosas

Em matéria publicada no Jornal do Commercio, em 10.07.2006, Augusto Boal, o teatrólogo mundialmente conhecido, afirma: “Existe uma boa quantidade de textos teatrais que são feitos para anestesiar os espectadores, que são criados para que eles não tenham opinião.
Todo cidadão, todo artista, tem obrigação de fazer um mundo melhor do que esse, porque esse mundo está horrível. Quem não se posiciona politicamente está ficando ao lado dessa situação”.

Tais palavras soam como música e trazem alento a um coração cansado de acompanhar o rumo que vem seguindo, nos últimos tempos, as manifestações artísticas no Brasil. Tomo como objeto de comentário o caso específico das obras de ficção, nas modalidades da novela televisiva – esse folhetim moderno – e do romance.

Acabamos de assistir ao desfecho de uma dessas novelas que, contrariando o seu título, e por critérios éticos, mereceria o rótulo de hedionda. E não me refiro, absolutamente, aos “happy-ends” concebidos para duas duplas de homossexuais – masculina e feminina: devemos respeitar os direitos das minorias, e enquanto a ciência especula sobre as causas desse comportamento atípico de machos e fêmeas da espécie humana, há que tê-lo apenas como questão de escolha individual. Nada a ver com a moral social, única referência do autor deste artigo, que se declara, desde logo, não-religioso e avesso a preconceitos.

Desejo chamar a atenção para outros aspectos do folhetim, que nos brinda com a vitória final da mais perfeita das vilãs jamais imaginadas: aquela que abandona a filha, monta um plano diabólico para destruir a neta, tenta arruinar um antigo amante, rouba o parceiro da amiga, trucida, impiedosamente, os cúmplices. Uma personagem, aliás, de maldade completa, absoluta, incompatível com os marcos da realidade. Pois bem. A essa criatura teratológica está reservado um destino de conto de fadas: fuga tranqüila da polícia e exílio dourado em Paris, nos braços de um gigolô com idade de ser seu neto.

E já que falamos em gigolô, isso nos conduz ao segundo aspecto a ressaltar: a apologia da prostituição masculina. Atente-se: não se trata apenas de esforço de compreensão, tolerância ou leniência com o “amor pago a varejo”. Trata-se de exaltação, louvação, legitimação. Senão como entender a simpatia emprestada ao jovem rufião, a sua descontraída opção pela velhota que lhe oferece mais, abandonando a “coroa”, e o prêmio de consolação arranjado para esta, na pessoa de um novo garoto mercenário? E, neste caso, o novelista fez questão de ser explícito: o pagamento, pela matrona saciada, é feito em dinheiro vivo, na própria cama, ainda na lassidão feliz do pós-coito.

Se alguém argumentar que a atitude de vender o próprio corpo, fora de um contexto de miséria, não deve ser motivo de censura, e que devemos ensinar aos nossos filhos que o crime compensa, darei por encerrada a discussão. Não sendo assim, como espero, cumpro o dever de fazer-me voz dos perplexos e dos indignados.

Mas tal espécie de “indiferença moral” não se manifesta apenas no folhetim eletrônico, esse campeão da cultura de massas. É encontrável também na ficção mais seletiva dos romances. Dou como exemplo três livros de autores nordestinos: “As Dunas Vermelhas”, do potiguar Nei Leandro de Castro, “Concerto para Paixão e Desatino” e “Quando Alegre Partiste”, do paraibano Moacir Japiassu. Ambos os autores de excelente nível, mestres da sua linguagem, navegando bem nas águas do “romance histórico”: compondo a trama ficcional nos claros de um passado efetivo e fazendo conviver personagens verdadeiros com imaginários. Um gênero em moda, de muito apelo para a leitura.

O que constatei, no entanto? Embora situados em épocas de grande efervescência político-social, em que não faltaram exemplos de altruísmo, coragem e desprendimento – a revolução de 1930, a insurreição de 1935 e o movimento militar de 1964 – seus personagens são modelos de vícios: covardes, interesseiros, rapaces. Realismo? Nem tanto, penso com meu obstinado otimismo. Não somos assim tão torpes. Claro que não esperava encontrar apenas “heróis positivos”, mas também “heróis problemáticos” (categorias lukacsianas). Só que, na configuração destes últimos, que refletem, em suas debilidades, as contradições, as injustiças e os condicionamentos da sociedade, é preciso sentir a postura crítica do narrador. E, sem deslustre para os meus comentados, não percebi isso no que li.

Vejamos o caso dos bem sucedidos romances de Moacir Japiassu, meu brilhante conterrâneo. No primeiro deles, acima citado, que se passa na Paraíba da Aliança Liberal, o personagem mais simpático, um jovem filho de padre, dono de um assovio melodioso, com que acompanhava as missas do seu “padrinho”, faz sucesso como interrogador implacável de “perrepistas” presos, usando métodos nada convencionais. Depois, prático-farmacêutico, não vacila em envenenar um usineiro, por interesses materiais, a pretexto de medicá-lo. No segundo livro, ambientado no Rio da “Revolução Redentora”, um esquerdista vende a irmã menor de idade a um coronel do Exército, para escapar da cadeia, e, com o suicídio inesperado da garota, consola-se com um posto diplomático no Exterior, mantendo-se como auxiliar e cúmplice do algoz. Outro, caminhoneiro, ao dar fuga a um jornalista perseguido, para livrar-se de um incômodo “carona” direitista mata-o a cacetadas, e no afã de certificar-se da perfeição do “serviço”, enfia-lhe uma chave de fenda no ouvido.

Entendam-me bem: não se trata de negar ou esconder a crueldade e a vileza, que são parte da condição humana. O que me choca é abordá-las com neutralidade, com distanciamento, como se a maldade fosse algo a ser aceito conformadamente, e contra o qual não valesse a pena lutar.

Volto a Augusto Boal, para prestar-lhe homenagem, glosando a sua declaração com o registro de que o posicionamento político, por ele exigido para os intelectuais, implica também um compromisso ético. Ao lidar com esse conflito imemorável da natureza humana, a literatura de ficção pode espelhar vitórias episódicas do Mal, comuns e até freqüentes em nosso dia-a-dia. Mas nunca aceitá-las como inelutáveis, ou perder a perspectiva da vitória final do Bem, ainda que no plano da escatologia. Pois só assim a nossa vida “vale a pena e a dor de ser vivida”.

Clemente Rosas é consultor de empresas

N.R. Mais um amigo vem nos honrar com a sua presença.

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