quinta-feira, julho 20, 2006

Recuerdo 05 - O BINÓCULO DO PRIMO GERMANO

Hugo Caldas

Década de setenta, férias no Rio de Janeiro. Rua da Carioca. Dois primos a tomar chope escuro no Bar Luiz jogando conversa fora. Já íamos no décimo segundo e o primo Germano, binóculo em punho, se danava a perscrutar o horizonte, coalhado de edifícios. Oficial reformado da Marinha andava com aquele binóculo para cima e para baixo, envergando um impecável terno de linho branco, mas ao invés de mirar o oceano preferia dar um flagra indiscreto em alguma janela desprevenida de algum prédio. Aquilo me dava uma pontinha de inveja. Bem que eu gostaria que aquele binóculo fosse meu para que eu pudesse, olhando para o mar, assumir a pose de Fredric March na cabine do porta-aviões em “As Pontes de Toko-ri”. O primo Germano era uma pessoa agradável de se conviver. Dois ou três anos mais velho lhe davam a certeza de que eu o levaria a sério em qualquer circunstância. Mesmo que não estivéssemos enxugando as belas tulipas com o saboroso e honesto chope escuro do Bar Luiz. Contava ele haver sido muito íntimo de um famoso marechal do exercito, já reformado, mas que exercera o seu direito de ter um oficial superior como ajudante de ordens. Ele foi esse ajudante de ordens. Daí a convivência, daí a intimidade. Mas, fazendo ares de alto segredo, dizia que se eu tivesse a audácia de passar adiante a história que iria me contar ele negaria tudo e me chamaria de mentiroso na frente de todo mundo. Fez, entretanto uma ressalva: “já que você gosta tanto desse binóculo… faço um trato… no dia em que você receber uma encomenda pelo correio com esse binóculo dentro, aí estará a chave para você abrir o baú e contar de vez tudo o que eu lhe conto agora”.

- “Anos de chumbo, o marechal gozava sua merecida reforma. Mas, o seu retiro revelou-se não ser tão tranqüilo assim. Um neto seu, envolveu-se na luta armada, foi preso e torturado. Dizem até, que de tanta crueldade, tanto choque elétrico, terminou emasculado. E aí… bem, aí entra o caso contado pelo primo Germano.

O marechal, ao ser inteirado do ocorrido procurou certificar-se do nome das pessoas envolvidas diretamente nas torturas do seu neto e decidiu aplicar um corretivo nos responsáveis. Certo dia, após ponderar bastante, fardou-se, colocou a pistola 45 no coldre e rumou decidido, juntamente com o Capitão de Fragata Germano, para o prédio do Ministério da Guerra.

Lá, causou um pequeno alvoroço, ao procurar saber sobre um tal Major Cipriano da 2ª Seção que diziam, ser o terror personificado, pois lidava diretamente com os subversivos presos. De posse da informação, encaminhou-se para o local e em lá chegando o tal major levantou-se num misto de susto e respeito pela patente, prestando meio desajeitado a devida continência. O capitão Germano ficara do lado de fora a fim de prevenir qualquer contratempo.

Deu-se então o seguinte diálogo:

- O senhor é o Major Cipriano da 2ª Seção do CIE?

- Sim, senhor Marechal.

Ato contínuo, o marechal sacou a 45, dizendo firme, “ele era meu neto, seu infeliz” e desferiu certeiro disparo na testa do major que se dobrou e caiu num baque surdo por trás do sofá. Calmamente repôs a pistola no coldre dirigiu-se à porta enquanto um pensamento cruzava a sua mente…

“foi por você, meu neto”.

Todas as pessoas que trabalhavam no prédio naquele dia foram obrigadas a esquecer o ocorrido sob pena de pesado castigo. Muita gente foi transferida para os lugares mais distantes… nunca aconteceu nada a ninguém. Mutismo total.”

- O Marechal ainda viveria algum tempo, morrendo em 1984, um ano antes de Sarney assumir a Presidência, dando fim à ditadura. Foi enterrado sem as honras militares a que tinha direito. Castigo?

O primo Germano faleceu dez anos após o acontecimento.

Coisa de cinco anos atrás recebi de um dos seus filhos uma encomenda pelo correio. Um binóculo. Deixei passar mais algum tempo e descarrego agora esse “recuerdo”. Será que é falso? Será que o fato realmente aconteceu?

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