quinta-feira, julho 20, 2006

Recuerdo 07 - PERIGOSO AGITADOR ARGENTINO PRESO NO RECIFE

Hugo Caldas

Testemunha da intolerância reinante foi a cidade do Recife, nos idos de 1967.

Voltava de Natal, para onde fora, temporariamente transferido, a fim de desenvolver um projeto na Base Aérea do Parnamirim. O grande desafio consistia em fazer com que as tripulações dos trinta B-26, aviões de transporte e bombardeio, falassem inglês em três meses, já que as aeronaves seguiriam para Houston, Texas, a fim de serem recondicionadas. De Belém para cima a comunicação com as torres de controle dos diversos aeroportos e bases aéreas, somente se daria no idioma britânico. O Tio Sam, que havia doado os brinquedinhos ao final da Segunda Guerra, agora os queria de volta. Descobriram que eram o equipamento ideal para as condições de combate no Vietnam. Ofereciam em troca, aviões mais modernos, porém o Brasil não aceitou a barganha e decidiu pela continuação das provectas aeronaves em serviço. Projeto terminado a contento. Três meses de trabalho, ao mesmo tempo em que fiz grandes amigos. Amizades essas, que não foram de muita valia, como se verá mais adiante.

Voltei para o Recife como membro honorário do 5º Grupo de Aviação, com direito a bastão de comando e tudo. Retomei minhas atividades de rotina ao mesmo tempo em que os Deuses do Teatro me proporcionaram a concretização de um velho sonho. Subir ao palco como profissional. Por obra e graça de Rubens Teixeira, me integrei ao elenco do Teatro Popular do Nordeste – TPN, então sob a direção da pessoa notabilíssima de Hermilo Borba Filho. Decidiu-se um dia que o espetáculo em cartaz deveria viajar pelo Norte-Nordeste e, me ofereci para conseguir, mercê a minha condição de membro do 5º GAV, umas passagens de avião pela FAB. Para que, Terezinha…!

Tudo seguia seu rumo normal. Tinha por colega na escola de inglês onde lecionava, o filho de um coronel da Força Aérea que se prontificou a dar uma ajuda. Combinamos um encontro no aeroporto, e no dia aprazado, em meio a movimento atípico para um início de semana, as "autoridades competentes" estavam entronizando uma placa comemorativa ao famoso atentado ali perpetrado, exatamente um ano antes. Solenidade com banda de música, discursos patrióticos e tudo. Subitamente os acordes do Hino Nacional se fizeram ouvir. Me levantei, mecanicamente, não sendo seguido, entretanto, no meu gesto, pelo colega que me acompanhava, Silvio Branco, que terminantemente recusava-se a se levantar da cadeira.

Como era esperado, não conseguimos falar com o tal coronel devido ao bafafá instaurado ao final da cerimônia. Ao deixarmos o ônibus na Avenida Conselheiro Aguiar, uma caminhonete Alvorada freia espalhafatosamente, quase em cima de nós dois, de onde saltaram dois brutamontes, que aos berros, apontavam metralhadoras em nossa direção. Nos rebocaram para dentro do veículo e nos mandaram calar a boca e deitar no chão do carro. Fomos levados à Secretaria de Segurança na Rua da Aurora. Ficamos mofando e peregrinando de sala em sala. Ninguém explicava nada. De vez em quando, algum tira chegava até onde estávamos e nos olhava de alto a baixo. Terrorismo. Mais de uma hora depois, alguém apareceu dizendo: "é pra levar os presos pro 4º exército." Na entrada do quartel a surpresa: nos recebeu um major que descobri ser meu aluno. Ele foi logo se desculpando, "professor, já testemunhei junto ao coronel da sua condição de meu professor de inglês, e em confiança testemunhei também pelo rapaz que o acompanha, mas ele cismou que os senhores são dois perigosos agitadores argentinos, e infelizmente terão que se entrevistar com o comandante".

O general nos recebeu em pé no meio da sala do seu escritório, o que automaticamente nos forçava, a não sentar. Parecia absolutamente transtornado, olhos inchados, possesso, lembrava um personagem de Nelson Rodrigues. O homem chegava a cuspir na nossa cara de tanto gritar, "fale, infeliz, eu quero ver o seu sotaque – eu fui para a guerra". Silvio, também transtornado, rebatia, "foi pra guerra, azar o seu!" Recomeçou então, a peregrinação de sala em sala até ficarmos em total isolamento. Das 11 da manhã até depois da meia noite. Sem telefone e sem o direito de avisar à família, advogado, trabalho. Ninguém poderia saber onde estávamos. Da mesma maneira que nos prenderam, nos soltaram às duas da madrugada. Descobri tempos depois que talvez a razão de tudo estivesse por conta do discurso de D. Helder ao receber o título de cidadão pernambucano, outorgado no dia anterior pela Assembléia Legislativa. O general precisava de um bode expiatório. Passei um bom tempo na maior neura, imaginando que a toda hora estava sendo seguido. O Sílvio, apesar de moderado passou-se de vez para o outro lado. Meses depois assisti a sua prisão defronte do prédio dos Correios. Vi quando foi retirado pelos esbirros da polícia, de cima de uma caminhonete, megafone na mão, concitando uma greve de estudantes. A revolução ganhara mais um inimigo, gratuitamente. Soube depois que teria se envolvido com a luta armada. Nunca mais o vi nem cheguei a ter noticias do meu jovem companheiro "agitador argentino". Durante a ditadura todos nós tivemos a nossa parcela de envolvimento. A nossa quota de perseguição. Muitos caíram, morreram. Muitos foram presos e torturados. Uns mais outros menos. Nesses tempos atuais, lembro o Deputado Gabeira: “foi para isso, foi para chegarmos a essa situação deprimente e vergonhosa, que todos nós rolamos tantos barrancos…?"

Um comentário:

Rachel Rangel disse...

Li seu depoimento e me sensibilizo. Mas, isso foi em 1967. Hoje, não vemos mais isso acontecer.Graças às mudanças democráticas. Hoje temos o poder de expressão, ou não temos?
Concordo que a história conta fatos e contra fatos não há argumentos. Mas, indubitávelmente os anos passam e com eles as novas historias mudam também.
Deculpe se discordo de sua visão pólitica, mas concordo que discorde da minha.
Não pretendi desreipeita-lo, apenas pensei que vc tivesse a condição de trocar idéias e posições distintas.
Vc diz no seu blog que já foi de tudo um pouco, mas não senti hoje na sua resposta , um pouco de democracia.
Meu respeito às suas qualidades.
Rachel