quinta-feira, julho 20, 2006

Só Pode Ser Inveja...

Carlos Mello

Chamo essa minha amiga de Maga Patalógika porque ela percebe coisas que ninguém vê. Vou muito no que ela diz. Uma noite, no meio de um papo, olhou pra mim bem séria:

- O problema é que você provoca muita inveja.

- Eu?! É boa! De quê?

- Não sei. Mas provoca.

- Mas por quê?

- Sei lá, você é inteligente, fala bem.

- Grande coisa!

Voltei pra casa embrulhado naquela idéia. A noite estava fria, coisa tão rara no forno dessa cidade – o ônibus quase vazio, enrodilhei-me num banco. Tomara que ninguém venha sentar aqui, que não tenha nenhum assalto. Preciso pensar com calma nesse negócio de inveja. Poxa, mas inveja de mim?

Em casa, botei depressa o pijama, deitei, cobri-me, dobrei os joelhos agarrado ao travesseiro. Meu Deus! Então tem gente querendo ver minha caveira? Mas por quê? Que mal eu fiz, que mal posso fazer a quem quer que seja? Na minha cidade, quando a gente queria esculachar alguém, dizia: “É feio, pobre e mora longe”. E sempre outro acrescentava rindo: “E dança mal”. Puxa, eu correspondo a essa descrição, com a agravante de acrescentar “e é velho”. Como é que ainda consigo provocar inveja em alguém?

De manhã, olhei minha cara no espelho, os móveis a minha volta, as paredes descascadas do conjugado, a toalha de banho dependurada na cadeira. Me lembrei da estória que o profeta Natã contou ao rei Davi, antes de espinafrá-lo pela pisada na bola : “Havia dois homens numa cidade, um muito rico, outro muito pobre, que só tinha uma ovelha. O rico, para recepcionar um amigo, tomou a única ovelha do pobre e a preparou para o visitante.” Eu me sinto como esse pobrezinho, minha única e magra ovelha é essa coisa vaga e genérica: “ser inteligente e falar bem”. É isso que provoca inveja? Esses miseráveis querem me tomar até essa magra cordeirinha?

Preciso falar com a Maga! Devo doravante ficar calado, ou só falar sandices, como todo mundo? Para que não me invejem, não fiquem me secando? A Maga deve ter a solução pra isso.

É claro que o telefone está mudo. Bom, a porcaria do orelhão foi depredado de novo! Os idiotas, quebram o que pode ser útil a eles mesmos. Se ainda tivesse meu celular… Nunca vou esquecer o mulato com a arma apontada, os olhos injetados, eu sozinho no ônibus. A cobradora disse que não viu nada. Claro! Há um acordo de cavalheiros, você não me denuncia, eu não te assalto. Quantas vezes refiz essa cena, sempre com um desfecho diferente. O cara ia descendo, eu tinha uma arma escondida, mirava bem o cóccix, ele ficava paraplégico pro resto da vida. Ou então, eu vinha no ônibus, subia o mesmo cara de novo, não me reconhecia. Eu fingia uma pressa, descia, lá vinha um carro da polícia.

- Que foi que houve, Professor?

Era o Fofão, meu ex-aluno, lembrou logo de mim.

- Um cara me assaltou naquele ônibus.

- Agora?

- Não, faz tempo. Mas é ele, vai assaltar de novo. É um mulato, de bigode, com uma capanga jeans na cintura.

- Entra aqui, Mestre.

Era ele mesmo, jogaram o cara no camburão. O outro PM achou logo o três-oitão na capanga, junto com documentos e dinheiro.

- Que é que a gente faz agora, Mestre?

- Eu, por mim, esse cara não tinha mais licença de respirar.

- Deixa com a gente. Tem algum aí, pro colega?

Dei com gosto os 200 reais que tinha tirado pra comprar um sapato.

Faz tempo isso, foi no ano passado.

Diabos, preciso falar com a Maga. Esse negócio de inveja… Finalmente o telefone deu linha.

- Maga, sou eu. Posso ir até aí?

- Já te disse que pode vir a qualquer hora.

- E se você estiver com alguém?

- A gente faz a festa juntos.

Era assim minha doce amiga adivinhona. Cheguei, ela estava enrolada na toalha. Ia tomar banho. Fiquei olhando uma caixa de fotos que estava em cima da mesa.

Fotos dela, do tempo da faculdade, década de 70. Que gatinha linda, riponga, com aquelas roupas aciganadas, cabelão. Ou de biquíni, fazendo camping. Ou topless, deve ser na ilha do Mel. Ela acampava lá. E esse cara com ela, bonitão, forte, cabelo cacheado? Esse sim, é que devia provocar inveja, não eu!

Lá vem a Maga, molhada, enrolada na mesma toalha. Agora tem uma certa barriguinha, um pouco de celulite no bumbum, peitinhos meio caídos, cabelos grisalhos. Tempus fugit, nec revertitur. Mas ainda é bem gostosa a minha Maga!

Por que não caso com ela? Sei lá, não dá certo. Ela mora bem, pelo menos bem melhor que eu, apê próprio, dois quartos, linda vista, boa clientela, prestígio no mundo psi.

Abraçou-me pela cintura, me deu uma força:

- Não é possível que um cara inteligente como você…

Esse comentário sempre me provoca uma esperança, mas daquela que já vem cansada. O que é que “um cara inteligente como eu” pode fazer? Eu não sei ganhar dinheiro, não tenho saco nem talento pra isso. “Quem nasceu pra dez réis, não chega a vintém…”, dizia minha mãe dos fracassados que não eram da família. Premonição, falava de mim, e eu não sabia.

Mas a Maga não acredita nessa profecia, acha que é auto-sabotagem.

- Por que você não encara um divã?

- Acredito lá em psicanálise! Tantos anos de tratamento, para ficar ainda mais desanimado e confuso. Só se eu for num terreiro…

- Pois vá! Qualquer coisa pra quebrar esse videoteipe que você passa sem parar na sua cabeça.

- Grande Maga! Você é que é minha analista.

E fomos pra cama. Dessa vez não foi como das outras, em que a gente transava de porre. Olhei bem pra cara dela, seus olhinhos de cobra, seu sorriso. Achei uma gracinha suas rugas, sua flacidez. Acho que ficamos mais de uma hora só nas chamadas carícias mútuas. Saí de lá tarde da noite, ela ficou dormindo quietinha. Mal cheguei em casa, tocou o telefone, era ela.

- Pô, cara, por que você foi embora? Tava tão bom! Foi maravilhoso, você me liga demais, parece que adivinha meus pensamentos!

- Que bom que você gostou.

- Muito. Não quer vir dormir aqui?

- Não, já é tarde, estou caindo de sono. Sábado à noite passo aí.

- Tchau, bejinho.

No sábado à noite, a coisa mudou. Pra começar, tinha um cara com ela, acho que um antigo namorado, iam jantar na Barra. Nada de festa junta, nem perguntaram, se eu queria ir. E já saíram de mãos dadas.

Caramba, que sábado! Para onde vou, a essa hora? Sem carro, com pouca grana. É por isso que muito nego pira, vai ser frade, monge. Esse mundo é um vale de lágrimas. Já sei, vou pra casa, tomo logo uns dois ou três comprimidos e durmo. Dito e feito. Acordei no dia seguinte às 11 horas da manhã, com o telefone. Era ela.

- Ôi, gatão, e aí? Que fez ontem à noite?

- Eu? Nada.

- Por que não quis ir com a gente?

Era de abilolar! Como, se nem me chamaram? Que cara de pau! Mas pelo menos isso aprendi com ela: o bom cabrito não berra.

- Eu já tinha compromisso, passei só pra te ver. E vocês, divertiram-se muito?

- Fomos dançar, tomamos um monte de chope. Acabei nem jantando. Tô até com um pouco de dor de cabeça.

- Que pena!

- Pena? Por quê?

- Porque eu ia te propor a gente sair, ir a um cinema.

- Não, cara, não tô a fim. Vem pra cá. A gente prepara um rango, descansa, à noite pode-se jogar um buraquinho, tomar uma cerva. Quer?

- Tá legal, chego já aí.

Tomei banho às pressas me arrumei o melhor que pude e saí ventando. Agora, caiu a ficha! Essa é a minha Maga, gostosa, cheirosa, linda e que me quer bem. Vai ver que o tal ex-namorado bateu fofo. E aqui vai o “presta-pra-nada”, o “pobre-feio-e-mora longe”. Nem Napoleão Bonaparte, nos seus melhores dias, ia mais ovante do que eu.

No prédio dela tinha uns moradores conversando com o porteiro. Não responderam ao meu boa-noite e ainda me olharam feio. Pensei com os botões do meu casaco:

- Só pode ser inveja…

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