terça-feira, setembro 19, 2006

O RECIFE QUE NÓS PERDEMOS

Riobaldo Tatarana

Vocês querem me ver zangado? Convidem-me para qualquer comemoração da batalha dos Guararapes. Nada contra o glorioso Exército brasileiro. Deus sabe com que emoção olho para o auriverde pendão e canto o hino nacional, o mais belo de todos os hinos. Mas tenho inveja de outros povos, como os argentinos e americanos, que apesar de seus hinos e bandeiras cafonas, são extremamente patriotas todo o tempo – e não só nas copas do mundo - não se envergonham de sua pátria, nem de seu Exército, nem de sua bandeira. Não me venham com ditadura militar e outros papos cansados. Travou-se uma guerra, esquerda e direita lutaram com coragem, nós perdemos, eles ganharam, mas felizmente tudo passou, veio a redemocratização, e com ela o paraíso de que hoje desfrutamos. Que nisso tinha razão Roberto Campos, ao afirmar a vantagem das ditaduras de direita sobre as de esquerda: as primeiras são biodegradáveis, acabam com a morte ou a velhice de seus manda-chuvas; já as de esquerda, que o digam Stálin, Fidel, Mao, Ceausescu...

E o que tem a batalha dos Guararapes a ver com isso? É que andei me informando melhor sobre o governo de Maurício de Nassau no Nordeste, suas obras, seus planos e projetos, e calculei o imenso prejuízo que tomamos com a expulsão dos holandeses. Se eles tivessem ficado por cá, muitas vantagens teríamos obtido, e que durariam até hoje, como até hoje duram as obras erigidas pelo nosso Johan Moritz van Nassau. Não foi por acaso que o povão criou essa expressão, “obra de holandês”, para referir-se a algo que dura muito tempo. Vejamos algumas dessas vantagens: em primeiro lugar, a tolerância religiosa. Apesar de calvinista, Nassau admitia, sem qualquer preconceito, a existência de quaisquer outras religiões, e até incentivava a construção de igrejas católicas perto de templos protestantes. Foi durante seu governo, precisamente em 1644, que erigiu-se em Recife a primeira sinagoga da América do Sul. Que diferença do rançoso e intolerante catolicismo ibérico, que para cá já nos enviara duas visitações do Santo Ofício, uma récua de sexopatas e fariseus, que puniram com terríveis castigos os judeus, homossexuais, adúlteros e quem mais ficasse atravessado em suas estreitas e infectas gargantas.

Mas há outras vantagens. Por exemplo, a língua. Falando holandês, certamente falaríamos também alemão, e aprenderíamos com muito mais facilidade o inglês. Como já tínhamos nosso bocado de português e tupi-guarani, afora umas tintas de francês, seríamos o único povo poliglota do mundo. Agora falamos apenas inglês e um pouco de português, que vai desaparecendo com nossa mania de americanalhar tudo, e com o lento e persistente trabalho de erradicação da língua lusa pelos internautas. Duvidam? Entrem numa sala de bate-papo da internet e verão que não são só os retardados mentais que conseguem comunicar-se em dialeto tatibitate. Ou leiam os manuais de aparelhos eletrônicos, sobretudo na área de informática, escritos, como bem disse João Ubaldo Ribeiro, em neandertalês. Nem nossa língua, “o idioma que o malandro pronuncia com voz macia”, o “brasileiro que já passou de português”, fomos capazes de amar e defender. Êta povinho, esse nosso!

Terceira vantagem: teríamos dupla nacionalidade, e poderíamos esnobar, como fazem as populações das Antilhas Holandesas, viajando sem passaporte, indo passar as férias nos Países Baixos, visitando os museus holandeses, apreciando in locu as pinturas de seus gênios, como Rembrandt e Van Gogh. Acham pouco? E nas copas do mundo poderíamos usar e abusar da bela cor laranja, em homenagem ao Orange de nosso patriarca. Em quarto lugar, quantos de nós não poderiam orgulhar-se de trazer em suas veias uma gota que fosse do sangue de Guilherme o Taciturno, nobilíssimo tio-avô do nosso Maurício? A quinta vantagem seria principalmente para nós, recifenses: nossa bela cidade seria belíssima, talvez a mais bela do mundo. Com a mania dos holandeses por água, seríamos de fato a “Veneza brasileira”, poderíamos perfeitamente percorrer a cidade de lanchas ou gôndolas, comer siri á beira d’água em Espinheiro e, quem sabe, ir até Igarassu e Goiana de barco.

A sexta e última das vantagens que vislumbro estaria na beleza irresistível de nosso povo. Os holandeses de hoje até que são meio mocoronguinhos, desbotados, enferrujadotes. Falta ali um bocado do vigoroso e ancestral sangue africano. Mas em Curaçao, em Barbados ou em Aruba, onde os galegos e galegas botaram pra quebrar com afro-descendentes e com os filhos e netos dos primeiros habitantes dali, vocês não fazem idéia da beleza daquela gente. É do Caribe! Que nós, como tivemos o aporte de muitos outros povos, acabamos até obtendo uma raça que, se não é bonita, é ao menos mui sestrosa e criativa. Imaginem como teríamos essas qualidades em grau maior se tivesse ocorrido um fluxo mais generoso de sangue batavo. Mas agora é tarde, fomos na onda de Henrique Dias, André Vidal e Felipe Camarão – este, o segundo índio colaboracionista do Brasil (o primeiro foi o Araribóia) - e mandamos barra afora nossos caros amigos holandeses. Bem feito! Os portugueses só queriam nosso ouro, nosso açúcar, nossa madeira. E construir igrejas imensas e tristonhas no lombo suado dos escravos. Mas também, quem nos mandou acreditar em piada de português?

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