quinta-feira, novembro 02, 2006

Mandrake

Carlos Mello

Pois foi assim: eu era solteiro, tinha uns 25, 26 anos de idade e estava jogando buraco em casa de uns amigos, como fazia toda noite de sexta-feira. A gente sempre jogava em duas duplas de parceiros, escolhidas na hora por sorteio, e naquela noite eram meu amigo e a mulher dele contra nós dois, isto é, eu e uma vizinha deles, de cima, moça carnuda, mais velha que eu, e que a qualquer hora do dia tinha o ar de quem acaba de sair do banho, um cheiro bom de sabonete, uma pele sedosa. Perto da meia-noite, tocaram freneticamente a campainha do apartamento. Meus anfitriões se entreolharam: quem será a essa hora, meu Deus? Era um bando ruidoso de amigos deles, antigos vizinhos, que tinham descido de Santa Teresa, onde moravam, para a Feira da Providência, que naquela época – os velhos do meu tempo hão de lembrar-se – acontecia na orla da Lagoa. Tinham bebericado muito e resolveram fazer aquela visita de improviso, encerrar a noite com uma grande bagunça. Meus três parceiros deixaram a mesa de jogo, foram receber os recém-chegados, e eu, vendo que aquela partida estava encerrada, fiquei no meu lugar, brincando com o baralho.
Fizeram-se de longe as apresentações, cumprimentei com um sorriso amável e continuei a traçar as cartas. Uma moça do grupo aproximou-se, quis saber o que estávamos jogando. Eu falei que nada, não era jogo, apenas eles tinham me chamado para pôr cartas para eles, mas a seção já estava encerrada. Ela pediu súplice que pusesse cartas para ela, eu me fiz de rogado, ela insistiu. A vizinha carnuda olhava de longe, sem entender. Então fiz um ar sério, tomei o baralho com firmeza, embaralhei, mandei que cortasse e tirasse uma carta desvirada. Deu um seis de espada, ou um dois de ouro, não me lembro. Franzi a testa, esfreguei lentamente as mãos. A moça aguardava ansiosa. Fiz um tsc, tsc, tsc, com a boca e perguntei:

- A festa acabou, não é?

E ela, emocionada:

- Pois é, acabou mesmo...

Mandei que recruzasse o baralho e tirasse outra carta. Dessa vez veio uma figura, um valete ou dama, de naipe vermelho. Olhei sério para ela e falei:

- A situação não é de perigo, mas você precisa ter muito cuidado para não se machucar. Compreende?

Ela fez que sim com a cabeça, mordendo de leve os lábios.

- Tire cinco cartas seguidas, mas não desvire. Entregue aqui em minha mão.

Ela obedeceu de novo, com a seriedade de quem estivesse consultando o próprio oráculo de Delfos. Mantive o ar misterioso e solene, abri as cartas uma a uma, formando uma cruz voltada para ela. Não lembro quais eram as cartas, nem o que falei a partir daí. Só sei que segui com aquilo por algum tempo, sempre com o semblante entendido e adivinhador. Até que cansei daquela brincadeira e afirmei muito sério:

- Não dá para continuar, o baralho trancou.

Ela levantou-se, olhou para mim e disse:

- Muito obrigada, obrigada mesmo. E ainda há quem não acredite nisso, não é?

Dei de ombros, como se dissesse que no mundo não há senão incredulidade e tolice e fomos nos misturar aos amigos. Nunca mais vi aquela moça.

Por que estou lembrando disso tudo agora, passados tantos anos? Porque decidi contar como esse pequeno incidente foi a salvação da minha vida, do meu casamento e da minha família. Sabem como? Bem, durante aquela noite bebemos um bocado de cerveja, depois um dos rapazes do grupo, que trajava um suéter berrante, quis saber se havia por ali Campari. Meu amigo trouxe uma garrafa quase cheia, o rapaz do suéter explicou que o grande lance do momento era pegar um copo longo, encher até à metade de Campari e ir deitando cerveja gelada. Bebia-se aos poucos, como se fosse uma cerveja mais amarga. Topei a brincadeira e em pouco tempo comecei a sentir um fiummmm na cabeça. Recordo vagamente das pessoas se despedindo, eu a acenar um adeus frenético abraçado à vizinha de cima, que não me largou mais, levou-me para sua casa, fez-me beber um remédio.
Acordei na manhã seguinte, nu, com dor de cabeça e um gosto ruim na boca. Ouvi um leve ruído de louça, um arrastar de cadeiras, e ela surgiu no quarto de robe branco, os braços nus, o eterno ar de quem saíra há pouco do banho. E convidou-me, quase intimou-me, com a doce repreensão de uma mamãe que vê o filho fazer alguma bobagem inofensiva, que viesse tomar café. E que café! Tinha pãozinho quente e tinha biscoitos, uma chávena de chá fumegante, queijo, manteiga, suco de laranja, papaia – um espetáculo de cheiros e cores ante meus olhos extasiados de solteiro-que-mora-mal-e-sozinho. Comi tudo, obediente, regalado, vestido com um roupão felpudo que ela tirou do seu guarda-roupa perfumado. É claro que almocei com ela, ali fiquei o dia e a noite do sábado e no domingo já estava decidido a pedi-la em casamento.
Essa vizinha de cima é hoje a minha esposa, mãe de meus três filhotes. Mudamos para um apartamento maior, temos dois carros, casa de veraneio. Viajamos sempre, a família toda, para a Argentina, para a Disney World, já fomos aos lagos chilenos. Não posso me queixar da vida.
Mas a coisa não foi sempre assim. Ao completarmos dez anos de casado, perdi o emprego. Logo depois, meu sogro faleceu no Norte, a herança foi quase nada, as dívidas se acumularam. Tínhamos então apenas um filho, morávamos ainda no apartamento do nosso primeiro encontro, de apenas dois dormitórios. A poupança estava quase acabando, eu mandava currículo para todo lado, não aparecia nada. A gente quase não saía de casa. Uma vez ou outra aqueles velhos amigos apareciam, jogávamos buraco. Uma noite, quando foram embora, minha mulher perguntou se eu lembrava daquela vez em que uns amigos deles tinham entrado ruidosamente e acabado com o jogo. Respondi maquinalmente que sim, mas alguma coisa na minha cabeça começou a mexer e a dar voltas, como uma roleta, a princípio devagar, depois numa velocidade estonteante. Sentei na poltrona entretido com aquilo, ainda ouvi a esposa chamando para a cama. No dia seguinte, olhei bem sério para ela e falei:

- Descobri uma saída para a nossa situação.
- Descobriu? Quando? Sonhou com o bilhete premiado?
- Mais ou menos. Decidi ser jogador de cartas.

Noutro tempo, ela teria rido, como ria sempre de meus disparates. Dessa vez fez um ar aborrecido, como quem diz “era só o que faltava, perder o restinho do que temos em jogo”. E foi cuidar do café da manhã. Mas a decisão estava tomada. Ia ser jogador, isto é, não ia jogar cartas, ia botar cartas, adivinhar o futuro das pessoas. Tinha a mais absoluta e granítica certeza de que aquilo daria certo. E deu. Não precisei fazer cursos, nem comprar baralhos especiais, nem nada. Comecei lentamente, com alguns amigos, antigos colegas de trabalho, e suas esposas.
Não há nada mais eficiente que a chamada “propaganda boca a boca”. Em pouco tempo as pessoas afluíam, todo dia, às vezes até já bem tarde da noite. Era um que queria saber se casava ou se fazia uma viagem, outro que ia fechar um grande negócio, mais outro que simplesmente desejava saber o futuro. Eu atendia a todos solícito, comecei a cobrar por consulta, depois por hora, comprei novos baralhos, alguns importados, vistosos, com valetes, damas e reis que mais parecem tirados de um desfile carnavalesco. Mas ainda tenho meu velho baralho, o original, benemérito baralho que me deu os primeiros clientes e as primeiras alegrias da nova profissão.
Hoje tenho escritório com ar condicionado e carpete, não atendo mais em domicílio – a não ser clientes especiais – e faço tudo com hora marcada pela secretária. É cada vez mais forte em mim o fluxo de idéias que me vêm à cabeça, quando leio nas cartas o destino dos meus clientes. O que faço com a mesma tranqüilidade com que leio o jornal de domingo. E assim vou faturando alto, feliz e satisfeito, e assim irei sempre, enquanto acreditarem em meus oráculos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Humor, ironia e veneno aí, de sobra, neste texto de Carlos, e
o que o torna tão bom de ler-se.
Alías, pelo que já li dele, é uma
das características do seu estilo.
Como se diz, aqui, na Paraíba, tem
gosto de venha-mais.
Serafim