terça-feira, novembro 14, 2006

RECUERDO 13 - O CORVO E O SOL DO BUTE

HUGO CALDAS

Dezembro em Recife calor infernal, como soe acontecer nessa época do ano. Temperatura acima dos 40º, absolutamente insuportável. Não me saía entretanto da cabeça, um belo album de xilogravuras de José Altino, paraibano dos bons, que tinha como título "Um Sol do Bute".
Era isso mesmo o que estava acontecendo. Um sol, um calor do bute. Miolos cozinhando, esgotado o estoque de sorvetes da casa, concordei e finalmente cedí aos lancinantes apêlos da minha mulher para irmos até a praia a fim de escaparmos um pouco da canícula, enquanto ela aproveitava para encontrar umas amigas de São Paulo que estavam por aqui de férias e a esperavam em frente à famoso hotel da orla. Não foi difícil encontrar as tais amigas pois todas ostentavam o mais autêntico "verde paulista". Após as saudações e salamaleques de praxe, olho para o vizinho do lado e quem eu vejo!

Só, embaixo de um guarda sol de hotel, tendo por companhia apenas uma garrafa de refrigerante, nada mais nada menos que o sr. Carlos Frederico Werneck de Lacerda. Isso mesmo, O Corvo. Um dos personagens mais importantes, mais polêmicos da política nacional entre os anos trinta e sessenta. O destruidor de Getúlio Vargas, o algoz de Juscelino Kubistchek, Jango Goulart, Janio Quadros, o inimigo íntimo de Brizola e mais uma récua de políticos "deste país".

Me encaminhei até a barraca e perguntei meio cabreiro - (vai que não era ele!)

- Governador Lacerda?
- E ele, "até segunda ordem! Senta aí".

Bem simpático, não me apresentei como jornalista - até porque não o sou - desde o início do papo, porém de certa forma deixou claro que não falaria sobre politica e muito menos de políticos. Acho até que conseguia advinhar o que eu iria perguntar e cortava com uma indagação qualquer, coisa banal, a hora da preamar, por exemplo. Daí então eu compreendí e nem mesmo perguntei o que viera ele fazer no Recife naquela época calorenta, de "derreter os untos," como diria aquele personagem de Eça de Queiroz...
Portanto a nossa conversa, que havia se iniciado de maneira absolutamente acidental, ficará na história pelo que não foi perguntado.

Não falamos sobre os mendigos do Rio da Guarda, nem sequer mencionei a doutora Sandra Cavalcanti, nem os seus desafetos na política, como Juscelino, Jango e o Almirante Aragão dos Fuzileiros Navais, a quem ele ameaçava ao microfone de uma estação de rádio carioca, em pleno dia seguinte ao 31 de março: "Almirante Aragão, venha aqui, bandido covarde e eu lhe matarei com o meu revólver". Vì depois no "O Cruzeiro" foto histórica do momento onde ele, Lacerda, envergava um casaco de couro preto trazendo uma metralhadora portátil à mão, nos corredores do Palácio Guanabara. Mas, nada de politica. Nada de Frente Ampla, movimento idealizado por ele em Lisboa, onde aliou-se à Juscelino e Jango contra a revolução. Nada também sobre o tiro no pé disparado, segundo seus inimigos, por ele próprio, quando do atentado da Rua Toneleros, onde perdeu a vida o major Rubens Florentino Vaz, da Aeronáutica. Todas essas perguntas que eu um dia sonhara em fazer ficaram para sempre no limbo da história.

Comemos ostras e casquinhas de sirí, tomamos cervejinha gelada, tudo como mandava o figurino e as regras do bom viver. Falamos de literatura, de suas traduções de Shakespeare - traduziu e gravou Julio Cesar e Romeu e Julieta. Falamos ainda de um dos maiores tradutores de Shakespeare, Onestaldo de Penaforte, a quem parecia detestar. Drummond e Manuel Bandeira também povoaram a nossa conversa. Sabia de cor "Momento Num Café", de Bandeira, "Quando o enterro passou, os homens que se achavam no Café tiraram o chapéu maquinalmente..." Era bom orador.

As suas gravações de Julio Cesar e Romeu e Julieta, apesar do idioma ser o português são, na opinião do professor Dilermando Luna, profundo conhecedor da obra de Penaforte, bem melhores e mais convincentes do que as mesmas gravações feitas em inglês pelo ator britanico Richard Burton.

Lacerda ainda gravou em vinil, uma série de discursos de José Bonifácio, o Moço, Joaquim Nabuco e Ruy Barbosa. Traduziu Winston Churchill, "Minha Mocidade" com título original "My Early Life – A Roving Comission".

Forçoso é reconhecer a falta que ele faz. Não se fazem mais políticos dessa estirpe. O polêmico, o intempestivo, o sagaz, o derrubador de presidentes... Já imaginaram o que não estaria aprontando face à esbórnia reinante? Será que este governo estaria à salvo das suas arrasadoras investidas? Aquele nariz aquilino, aqueles olhos vivos e aquela voz que assustava a tudo e a todos em nada me fizeram lembrar um agourento corvo.

A mim, pela educação, pela delicadeza, pelo trato e principalmente pela inteligência, lembravam uma personagem de certa história em quadrinhos. Uma coruja, que a todos se dirigia em tom bastante professoral, da maior simpatia, chamado Augustinho Mocho.
Carlos Lacerda morre de infarto em maio de 1977.

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3 comentários:

Anônimo disse...

Incrível, cara, essa foi uma oportunidade de ouro, e que você soube aproveitar muito bem, entendendo que ele não estava a fim de entrevistas. Foi melhor conhecê-lo assim, como gente. Na época, tínhamos-lhe ódio, achávamos que era um reacionário e fascista (e era mesmo muito reacionário). Mas quem mora há mais de 40 anos no Rio, sabe que sem sua administração, estaríamos hoje numa cidade totalmente inabitável. Porque TODOS os governadores que o sucederam, até hoje, foram incompetentes e demagogos, e não fizeram nem dez por cento do que ele realizou pela cidade. Se formos compará-lo com os Garotinhos da vida, então! Misericórdia! Carlos

Anônimo disse...

Como disse Carlos com propriedade,
Lacerda trocou o comunismo - segundo o primo dele, Nelson -
pelo fascismo, o que, a meu ver,
dá na mesma pois, sengundo as
leis da física, os opostos se
atraem. Aquele abraço. Serafim

Unknown disse...

Vixi! Sabia nao desse lado do Lacerda. Obrigada por me abrir os olhos.
Um abraco,
Neide Hornung