sexta-feira, março 09, 2007

PAULINHO TRIPA GAITEIRA

ELPÍDIO NAVARRO

Conheci Paulo Alves da Nóbrega no grupo teatral amador TEP - Teatro do Estudante da Paraíba, isso lá pelos idos de 1954. Paulinho era riograndense do norte, das bandas de Caicó. Depois, por ele influenciado, fui bater com os costados na Escola de Agronomia do Nordeste, na cidade de Areia, onde fizemos vestibular para o curso agrotécnico, chamado popularmente de Capa Gato. Foi ali que ele arranjou o apelido de Tripa Gaiteira, devido ao excesso de peidos que soltava e, o mais engraçado, pelo fato de queimá-los assim: erguia um pouco as pernas, acendia o isqueiro e largava o pum em cima da chama. Aparecia, então, um facho de luz azulada na escuridão do quarto do nosso alojamento. Paulinho não conseguiu aprovação no vestibular e resolveu ir embora para a sua cidade natal. Desde então, nunca mais nos encontramos. Ficaram as lembranças das brincadeiras, dos veraneios na Praia do Poço, das peças de teatro, enfim, da alegria que ele passava.

Na época, o Poço era uma praia para veraneio, residindo lá apenas pescadores. As casas, na sua maioria, tinham cobertas de palha, quando não eram toda feita de palha. Meu pai resolveu cobrir a nossa com telha de barro e foi preciso derrubar um coqueiro que existia na frente da casa, para evitar que o cocos caídos danificassem o novo telhado. Derrubar o coqueiro não foi grande trabalho como seria o de arrancar o seu tronco, cujas raízes eram por demais profundas. E o tronco foi ficando lá, sob o protesto do meu pai, que reclamava da minha indiferença para com o problema.

Num dos fins de semana que Paulinho foi passar lá em casa, no Poço, ouviu as reclamações do meu pai. Por conta disso propôs-me que, tarde da noite, quando todos estivessem dormindo, a gente saísse e fizesse o serviço reclamado. Depois esconderíamos o tronco arrancado, para que, no outro dia, houvesse uma surpresa geral. Eu topei logo a brincadeira e fiz todos os preparativos: pá, enxada, foice, tudo colocado em local estratégico, sem faltar também uma garrafa de Vinho Imperial e uma lata de Viandada. A noitada estava preparada!

Como havíamos planejado, após todos da casa terem ido dormir saímos de mansinho e demos início à nossa aventura. Cavamos em volta do tronco do coqueiro durante mais de uma hora, até quando uma fina chuva começou a cair. Já passava da meia-noite e, por conta da chuva, resolvemos parar um pouco e tomar o nosso vinho. Para isso nos abrigamos na biqueira da casa, numa lateral que dava para um grande terreno baldio. Em dado momento, começamos a ouvir um grito lacerante, vindo lá de trás, do lado das casas dos pescadores. Apuramos o ouvido e concordamos que alguém estava a gritar desesperadamente: "Mataram minha mãeeeeeee..." Ainda estávamos tentando confirmar a nossa audição, quando um vulto, vindo do lado de onde vinha o grito, atravessou o terreno, portando uma foice. Nos olhou e seguiu em direção à beira-mar. Ficamos bastante temerosos e, para aumentar o nosso temor, novamente ouvimos o grito de "mataram minha mãeeeeeee", dessa vez sem deixar quaisquer dúvidas. Nos perguntamos: o que fazer? Já pensando em procurar o comissário de polícia fomos, de novo, alertados por vultos que se aproximavam. Eram dois homens, vindos do mesmo local do primeiro. Também ao passar olharam para nós, seguindo em direção à praia. Mais intrigados ainda, começamos a planejar a nossa ida à procura de socorro, considerando que teríamos que cruzar o local do crime, caso procurássemos o comissário de polícia. Mais um grito de "mataram minha mãeeeeeee" e a volta do primeiro homem que passou. A essa altura, mil conjecturas fazíamos do que teria acontecido e, por precaução, resolvemos aguardar os acontecimentos onde estávamos mesmo, e esperar a volta dos outros dois que haviam passado depois. Ficamos dando tempo ao tempo e, de vez em quando, ouvíamos "mataram minha mãeeeeeee"!

A manhecença do dia já dava sinais quando resolvemos unir nossas doses de coragem e enfrentar a situação. Bravamente seguimos em direção do "mataram minha mãeeeeeee", após concluirmos que o assassino não estaria mais por lá e sim um filho que chorava a morte da sua mãe.

Um novo "mataram minha mãeeeeeee" aconteceu em cima da gente, causando a grande decepção: tratava-se de um galo velho cantando! O cucuricar da ave soava aos nossos ouvidos como um grito de dor! Voltamos com a cara no chão, putos da vida com a porra do galo e mortos de sono. Das pessoas que passaram por nós nunca ficamos sabendo quem eram, nem o que estavam fazendo, mesmo porque nada estava acontecendo. Nossa trágica fantasia policial evaporou-se e, sem mais ânimo para o trabalho, nos restou, apenas, deixar o tronco do coqueiro para outro dia, guardar as ferramentas e dormir.
Quando acordamos já passava das dez horas. Fiquei imaginando as reclamações do meu pai, cedo da manhã, ao se deparar com a buraqueira que deixamos á frente da casa. Fomos para a mesa tomar café e esperar os comentários. Ninguém disse nada, nem uma palavra. Nem meu pai, nem minha mãe. Achei tudo muito estranho e imaginei que talvez eles tivessem considerando a presença de Paulinho e não quisessem ralhar comigo na frente dele. Terminando o café, o meu companheiro de noitada saiu lá para a frente da casa. Fiquei, sozinho, na mesa, aguardando o carão e ninguém veio me reclamar nada! Aí, vindo lá de fora, volta o meu amigo
Tripa Gaiteira e pergunta:

- Camarada, me diz uma coisa, porque eu acho que estou ficando doido!
- O que foi que houve?
- A gente arrancou aquele tronco?
- Claro que não! Tá ficando doido mesmo, não é?!
- Tem certeza?
- Que loucura é essa, Paulinho? Por que?
- Ele não está lá não!
- Ele quem?
- O tronco!...
- Tá conversando!...
- Vá olhar!

Levantei-me apressado e fui até lá fora. O canto mais limpo! Nem tronco, nem buraco, nem vestígios! Meus pais estavam sentados no alpendre, sérios, falando de outros assuntos. Perguntaram-me se eu não iria aproveitar a praia porque estava um sol tão bonito, coisas assim. Aceitei a sugestão e saímos, eu e Paulinho, para a beira-mar, bastante intrigados com a situação. Não demorou muito uma nova surpresa. Lá, a uns cem metros em direção ao norte, avistamos ele, o tronco, olhando pra gente, como se estivesse rindo da nossa basbaquice!
Depois meus pais contaram tudo: haviam acordado de madrugada e presenciado, através das venezianas da janela do quarto, toda a nossa atividade, inclusive ouvido a nossa conversa sobre o "mataram minha mãeeeeeee". Bem cedo da manhã, juntaram-se com a empregada Beatriz e o marido dela, o pescador Antônio Amarelo, fizeram o resto do serviço e ficaram esperando a nossa reação quando acordássemos. Foi então que Paulinho Tripa Gaiteira me fez outra proposta, que, naturalmente, eu não topei:

- Hoje à noite, vamos trazer o tronco de volta e enterrá-lo no mesmo lugar?

eltheatro@eltheatro.com

Um comentário:

Hugo Caldas disse...

Beleza de relato esse, Elpidio.
Tens noticias de Paulinho?
Hugo