domingo, agosto 12, 2007

RECUERDO 22 - JOÃO PESSOA - ALGUMAS COISAS QUE GUARDEI...


HUGO CALDAS

(Foto: Mazaomi Mochizuki).

João Pessoa. Guy Joseph meu dileto primo, que me perdoe pelo uso da denominação arranjada em 1930. Mas eu prefiro. Razões sentimentais. Também sou paraibano e não nego. Há porém, um sentimento que me perturba o coração e a mente desde que, em Abril de 1959 decidi vir morar no Recife, mercê ter passado em um concurso da Panair do Brasil, já lá se vãos os tempos em que fazíamos concurso para atuar na empresa privada. O sentimento que até hoje me assalta é o de que, não importa a quase perfeita integração, aqui casei e tive filhos, ainda tenho a mais perfeita noção de que serei um eterno forasteiro na Mauricéia. Por outro lado, todas as vezes que volto a João Pessoa, seja a passeio ou negócio sinto, apesar do carinho dos amigos que ainda moram lá, que não mais pertenço às hostes Tabajaras. É um sentimento angustiante.

Mas, o que fizeram da minha cidade?

O primeiro chute na cara é quando porventura tenho a desdita de passar pelo Ponto de Cem Réis. Quem teve a infeliz ideia, a audácia de transformar um lugar tão belo e aconchegante nesta coisa deprimente, emparedada? Cadê o bonde dando a curva em frente ao Parahiba Hotel? Cadê o relógio no centro da praça? Cadê a "Esquina do Pecado"? O que fizeram com o Café Alvear? A Sorveteria Florida? O Bar Havaí? O Cine Plaza?

Aqui vão umas poucas coisas, que eu guardei com o maior carinho, desde os meus sete anos de idade, a respeito desta mui amada cidade que à época parecia querer extrapolar os muros da casa de número 47, da Rua Capitão José Pessoa, residência do meu avô, em Jaguaribe, onde ele abrigava sua família, suas filhas e eu, então seu único neto.

- Oswaldo Pessoa, era o prefeito da cidade e morava perto da nossa casa. Familia numerosa, várias filhas e Candinho, seu único filho, e um dos meus herois, juntamente com o Super-Homem e o Capitão Marvel, mas na verdade um malandrão de quatro costados.
Certa vez ouví Candinho numa conversa, dizer que lavava as mãos antes de ir dormir. Achei supreendente, não sei bem porque.

Em frente morava Lourdinha Flores sua namorada, em um sobradinho meio sombrio, que mais tarde seria a morada de Dr. Napoleão Laureano. Depois foi residência de uma tia minha que afirmava por todos os anjos do céu e os diabos dos infernos, ter visto almas penadas passeando pelos corredores e salas escuras da casa.

Certo dia correu na rua um boato, dando conta de que Candinho, praticamente noivo de Lourdinha Flores, havia avançado o sinal e comido a merenda antes da hora do lanche. Pode-se bem imaginar o tipo de falatório, a mofa, o disse-me-disse, sobre semelhante acontecimento contra os bons costumes e as regras do bem viver em plena década de 40. Como um chiste, o seguinte diálogo apareceu na boca do povo:

- Candinho, você quer casar com Lourdinha Flores?
- Não senhor, meu pai.
- Mas sabe que vai casar com Lourdinha Flores?
- Sei sim senhor, meu pai.

Casaram. É bem verdade que o casamento não durou muito tempo, mas...enquanto isso assumo devem ter sido felizes. Lourdinha Flores era uma moça muito bonita.

- Nas quarteladas da vida e em qualquer tumulto da direita, o Dr. Santa Cruz era sempre o primeiro a ser preso. Lembrava o filme Casablanca, quando o Capitão Renault, (Claude Rains) vira-se para o ajudante e diz: "Prenda os suspeitos de sempre". Em pleno abril de 64, "revolução" em marcha acelerada, feito serpente recém-saída do ovo, pediu o Dr. Santa Cruz que sua esposa lhe preparasse uma valise com algumas roupas, sabonete, pasta de dentes, escova, estojo de barba etc, mais alguns remédios e postou-se no terraço à espera do inexorável camburão do exército. Dito e feito. Não deu meia hora apareceu um tenente recém-saído das fraldas (havia sido seu aluno na faculdade de Direito) com um aparato militar de fazer corar um senador da república.

"Mas tenente, era preciso mesmo essa parafernália toda apenas para prender um velho professor? Bastava ter dado um telefonema que eu iria. Não carecia de o senhor se preocupar..."

- Por onde anda Fernando Macedo? Ele juntamente com Breno Mattos, eram os "comunistas" mais manjados da cidade. Fernando, nos shows produzidos pelo Teatro de Estudantes, vestia uma roupa colada ao corpo, camisa aberta ao peito, mangas frufru, ao mesmo tempo em que empunhava duas maracas nas danças cubanas, num requebrado pra lá de sensual. Breno era chegado a fumar cigarros americanos bebia uísque e dançava rock and roll, dá pra acreditar? Certa vez, Lindaura Pedrosa encenou "O Boi e o Burro a caminho de Belém", um auto de natal de Maria Clara Machado, e convidou Fernando para o papel de um dos pastores. Eu fazia um dos Reis Magos. Estavamos sempre perto um do outro. Durante a encenação, ao ar livre, no adro da Catedral, Fernando devidamente trajado como pastor, saiote de estopa, pequeno carneiro nos braços, cordas enrodilhadas nas pernas à guisa de sandálias, sentiu que alguém alisava as suas coxas. Foi maior tumulto. Gritaria, empurra-empurra e de repente o canto mais limpo. O "pastor" deixa a cena, correndo atrás de um sujeito baixnho com cara de tarado. Debalde. O nefando indivíduo perdeu-se no meio da multidão e Fernando ainda foi devidamente admoestado por uma Lindaura furiosa, pelo absoluto desrespeito ao Auto de Natal, aos princípios cristãos e à tradição teatral.

- Os doidos da minha terra. Pombú do Pé Roxo, Cristóvão Pé no freio, Oscar Aragão, Pão de Bico, Ariranha, Imbuzeiro, Daniel, Dr.Mario, Mocidade, uma plêiade. Havia categorias.
Doidos políticos: Mocidade, Dr. Mario e especialmente Daniel, contínuo da Secretaria da Fazenda que irrompia o sagrado recinto dos bares aos gritos de "forca com eles, casacudos e venais da república", e malucos pela própria natureza como: Pão de Bico e Ariranha, que ao ouvir o grito "amostra Ariranha", levantava saia e mostrava as partes ditas pudendas. Certa vez Pão de Bico, católico/carola até a medula, vinha todo compenetrado, acompanhando uma procissão, com o seu passinho característico na ponta dos pés, rezando e cantando, missal em uma mão, terço na outra, fita vermelha com medalha de São Severino pendurada no pescoço...

"o meu coração é só de Jesus
A minha alegria
(alguém grita - "Pão de Bico," ele emenda, no ritmo e no tom)
é o cu da mãe"

A última lembrança que guardo de Mocidade: Íamos os dois descendo no bonde do comércio quando ao final da viagem ele foi reclamar do cobrador o troco ainda não recebido... "Chega de roubalheira nesta República"!

Imbuzeiro, alto, moreno carapinha branca, olhos desencontrados, eternamente babando, ia diariamente numa passada característica, de Jaguaribe à pé, até o velho Ponto de Cem Réis com uma geringonça de madeira e papel às costas, que amarrava em um poste elétrico fazendo as vezes de cartaz do filme em exibição à noite no Cine Jaguaribe. Pombú e Cristóvão eram exímios no uso das mais variadas palavras de baixo calão, que berravam aos quatro cantos, onde quer que estivessem e ouvissem a menção dos seus respectivos apelidos. Oscar Aragão era uma mansidão de cordeiro. Ia sempre à missa na Catedral ocasião em que ajoelhado, soltava uma série de "puns" desagradáveis e sonoros. Não tinha um dente na boca e cantava o Hino Nacional todas as vezes que algum jovem mais cruel o chamava de comunista. Uma pândega. E uma crueldade, por suposto. Esta a João Pessoa que gostaria de rever. Esta a João Pessoa que ainda me faz muita falta. Reafirmo: "Sou paraiba e não nego".

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Um comentário:

Anônimo disse...

Amigo Hugo,

Depois de conferir seu blogspot, cumpro a promessa de comentar seu texto nostálgico sobre a nossa João Pessoa.
Dos personagens evocados, tenho fortes lembranças de Pão de Bico e de Pombu do Pé Roxo. O primeiro, porque era aficionado de procissões, e quase todas passavam pela frente da nossa casa, na Rua Desembargador Souto Maior, a antiga São José. E de Pombu, porque fui alvo de uma longa descompostura pela própria. Ela apareceu na casa de minha avó, vizinha à de meus pais, em cujo terraço, com uma grade dando sobre a rua, nós brincávamos todo dia. Pediu um auxílio. Quando eu me dirigia para a sala, para chamar a minha avó, passei pelo meu irmão Nelson e, de costas para ela, a uma certa distância, sussurrei: "É Pombu!". Nunca vi vista e ouvidos tão apurados como os da velhinha de vestido antigo, sombrinha, e as indefectíveis meias cor de vinho que lhe valeram o apelido: "Pombu não! Meu nome é Maria Joaquina dos Anzóis (qualquer coisa assim), e você é um menino muito mal educado, vou me queixar à sua mãe, etc, etc".
Quanto à nostalgia, direi que dói, mas é uma dor sem remédio, e tem o seu próprio consolo. Temos saudade não apenas de um lugar, mas de um lugar inserido num tempo, e este não volta. Temos que aceitar a inexorabilidade desses dois elementos da realidade externa a nós, para os quais a ciência não tem definição, mas que não podem ser negados. Só na infância, o "quando pode ser onde, e o onde é quando", no dizer de Paulo Mendes Campos. E a infância já perdemos. Mas nos resta a pátria das lembranças, e esta ninguém nos toma. Consolemo-nos, pois, com a revelação de outro poeta, Drummond, sobre as coisas presentes e passadas: "Mas as coisas findas/ Muito mais que lindas/ Essas, ficarão".
Meus parabéns pela sensibilidade da crônica, que sinto como se também minha fosse.

Clemente