quinta-feira, outubro 25, 2007

CURTO E GROSSO

RIOBALDO TATARANA

O dono deste blog afiança-me que tenho três leitores fixos, além de alguns esporádicos. Dou o dito por verdadeiro. Por isso, resolvi dar-lhes as razões de meu longo silêncio. Andei meio adoentado, com um enjôo impertinente, não no corpo, mas na alma. Peço que sigam com paciência meu relato. Há nove anos completos refugiei-me aqui, nesse desvão de Casa Caiada, com minha mulher e meu falecido fox-terrier Jagunço. Juntaram-se a nós D. Mira, a mais perfeita cozinheira que há nesse mundo, seu esposo, o Aprígio, e o filho deles, Raimundo, pescador exímio e mestre de capoeira. E aqui tenho vivido, numa situação incomparavelmente mais confortável que a de Adão no Paraíso.

Adão, além da companhia da fofoqueira Eva (uma mulher que conversava com cobras!) ainda tinha, por mandado de Jeová, que zelar pelos bichos, dar-lhes nomes, indicar os alimentos apropriados a cada espécie, uma trabalheira sem fim. Eu, não. Minha mulher é um anjo de bondade e paciência, tenho casa própria, uma aposentadoria pequena mas certa e toda a paz do mundo. Não tenho carro, e raramente vou a Olinda. Recife já me parece uma viagem digna de Vasco da Gama. As outras cidades não me interessam. Aqui não chega jornal, não tenho rádio e não ligo pra tevê. Saio às vezes para pescar com o Raimundo, ou vou conversar na barraca do Sêo Basileu. Não quero outra vida.

À noite, minha mulher e a D. Mira assistem à televisão. Durante algum tempo acompanhei-as, para ver os noticiários. De repente me apareceu um mal-estar, um fastio, uma falta de apetite, que nem os quitutes da D. Mira conseguiam abalar. Fiquei preocupado. Eu não fumo há mais de trinta anos. Não bebo, a não ser a higiênica taça diária de vinho tinto, no jantar. Cheguei a pensar que D. Mira, em conluio com a patroa, tivesse acrescentado algum tempero exótico, alguma pérfida pimenta, que agredira as paredes do meu sofrido estômago. Mas estava enganado, e continuei sem saber a que atribuir a mazela.

Vejam vocês como são nossas circunvoluções cerebrais. Uma noite, matutando na rede do terraço, me veio à memória uma cena pavorosa, da infância. Naqueles tempos ditosos, as crianças tinham vermes, e era preciso purgá-las com óleo de rícino. Certa vez apareceu lá em casa uma senhora, procurando trabalho, com seu filho, um garoto amarelo e buchudo, que não falava, não ria, não brincava. Diagnosticaram logo: é verme! Tacaram-lhe uma talagada do bendito purgante e ficaram esperando o resultado, que não demorou. Todo mundo foi ver, e eu também, sem saber direito de que se tratava. E lá estava, no chão, a coisa mais repugnante que já vi em toda a vida, uns bichos ascorosos, esbranquiçados, a remexer no cocô. Saí dali para vomitar, aquela cena permaneceu muito tempo na minha memória. Ainda hoje, quando lembro, volta-me uma certa gastura.

Felizmente, logo depois de reviver essa cena na lembrança, veio o estalo: meu enjôo devia-se à revivência da situação vivida da infância. Os telejornais, com suas notícias sobre falcatruas de políticos e safadezas de milionários, foram a pouco e pouco criando em mim a mesma sensação d’antanho. Vocês podem achar que é exagero, ou frescura. Mas o fato é que tão logo larguei o vício televisivo, veio a cura. Porque a situação que vivemos neste belo país é essa: a Polícia Federal investiga, faz escutas, grava conversas, prende um monte de meliantes, mas ninguém fica na cadeia. Só se for algum pé rapado. Mas um sujeito que meteu a mão na grana, arruma logo um refinado advogado, que arranja um habeas corpus ali na esquina, o processo é arquivado por falta de provas, ou de testemunhas, ou de vergonha na cara mesmo, e acabou.

Não pensem que me queixo dos juízes. Pelo contrário. Acho até que merecem elogios por se aterem à lei, como manda seu juramento e sua consciência. O problema não é o juiz, é nossa legislação calhorda, cheia de furos e escapadelas. Também o que esperar de leis feitas naquelas casas de tolerância de Brasília, onde o governo só consegue aprovar alguma coisa de útil para o país depois de atender a mil e uma mutretas dos parlamentares, liberação de verbas, de empregos, de sinecuras?

Tenho um palpite que parece confirmar-se a cada dia: Brasília tornou o Brasil inviável. Além de custar-nos os olhos da cara, levou o esquema para longe da vigilância dos eleitores. Se a capital federal ainda fosse no Rio, com o Senado na Cinelândia e a Câmara na Primeiro de Março, duvido que esses sujeitos limpassem o rabo com a opinião pública, como fazem. Mas ali no DF, nas brenhas do cerrado, vale tudo. E ainda com o agravante de que a solidão acachapante da cidade, seu feitio de prancheta, suas ruas sem esquinas, tudo leva o indivíduo obrigado a morar ali, ainda que só alguns dias por mês, a um desejo de vingança, que se externa na roubalheira da nossa grana.

Dirão vocês que exagero, que há uns dois ou três deputados e senadores que são honestos. Concordo, ainda que ache o número meio exagerado. Mas esses mesmos, que podem fazer, pobres andorinhas no meio da borrasca? Nada. E se eles não podem, muito menos eu. Assim, decidi aproveitar o tempinho que me resta cá por baixo para tomar em paz minha água de coco, chupar meus cajus, andar pela beira da praia. Querem vida melhor? Um dia desses, olhando a copa dos coqueirais, veio-me outra lembrança, essa grata e bela. Antigamente brincava-se muito de adivinhações, algumas bem poéticas, como essa: “Altas torres, bonitos penachos/ Água no bico, flores nos cachos”. A resposta é evidentemente “coqueiro”. Não é uma lindeza?

2 comentários:

Anônimo disse...

Huguíssimo
Adorei a matéria do Riobaldo. Comunique a ele que agora tem 4 leitores fixos. Além do mais o nome dele já é um poema. Parece coisa do Guimarães Rosa... Ultimamente andei fazendo coisa pior que ele, ou seja, além de ver TV eu assisti a todo o imbroglio de Renan Calheiros na TV Senado, AO VIVO E A CORES!!! Sou o melhor e maior exemplo de sadomasoquismo que conheço. Duvido que alguém me ganhe. A análise dele é perfeita. Porque, apesar do sadomasoquismo, tenho que reconhecer que ver a TV Senado, especialmente em momentos de crise, é profundamente didático. Dá pra entender porque nada funciona neste Pindorama. Ósculos e amplexos
Aline

Anônimo disse...

Caro Riobaldo,
Junto-me a você, quanto ao que foi dito quando vemos TV. É possível MESMO pegar-se vermes na alma! E a cura para isso está nas instâncias individuais de cada um.
Que Deus nos proteja e ilumine!