quinta-feira, novembro 29, 2007

FALSO RECUERDO - O MEU AMIGO GRAÇA


Hugo Caldas

Conheci Graciliano de Almeida Chacon ainda na década de 60. Revolução recém-saida do ovo da serpente. Éramos professores de matemática e história em um cursinho na Conde da Boa Vista e de onde estávamos instalados no quinto andar do Edifício Santa Inês, nos favorecia uma ampla visão das passeatas estudantís quase que diárias na avenida, bem como a repressão da policia montada do Esquadrão Luiz Cardoso.

Atravessamos incólumes os anos de chumbo. De súbito o Graça desapareceu. Pensei no pior. À época era comum alguém sumir no oco do mundo. Às vezes por vontade própria. Às vezes forçado. Às vezes as pessoas iam embora para não mais voltar. Não sei o que motivou o seu desaparecimento.

Nos reencontramos, quase ao final da década de setenta, já deixando de lado o magistério, em uma firma de exportação. "Fateixa, Comércio & Exportação Ltda". Nome pomposo para tentar vender no exterior umas bugigangas da OA (Ocean Atlantic) uma grife do maior sucesso à época.

O Graça se dizia muito mal amado, sem sorte mesmo. Havia casado e não era feliz. Nem tivera filhos. Por força do ofício, passávamos grande parte do tempo viajando. Adorava quando saia de viagem. Quinze ou trinta dias fora de casa eram um bálsamo para ele. A mulher, dizia, lhe arranjava mil e umas. Ele, pelo seu lado dava o troco.

Certa noite solitária e fria em Chicago, estávamos bebericando, jogando conversa fora, no piano bar do hotel quando, feito andorinhas, um bando de garotas se aproximou de nós dois. Constatei que certo tipo de abordagem é universal.

- Alguém aí tem fogo? Que horas são?

Havia um imenso relógio na parede bem em frente. Uma lourona interessante, de nome Cindy logo se bandeou para o Graça. Eu me contentei em bater papo com uma india Apache bem simpática de nome "Pink Cloud". Por incrível que pareça conversamos boa parte da noite sobre o cinema de Glauber Rocha. A admiradora tinha visto recentemente, "Terra em Transe" pela enésima vez. Podem vocês muito bem avaliar o tanto de volúpia e sensualismo da minha noite.

Lá pelas tantas decidi ir dormir, sem a índia, evidentemente, pois só o sacrifício de tirar toda a roupa já seria demais. Um frio do bute. Mas o Graça, não. Ele não estava nem aí. Faria o que estivesse ao seu alcance para dar uma corneada na mulher. Ah, disso não abriria mão. Não voltou para o quarto, só reaparecendo quando o sol já ia alto. Disse-me depois que foi uma noite de loucuras. Acredito. Pelo riso cretino estampado na cara.

A respeito da sua jovem esposa, ainda hoje lembro que tudo era motivo de aborrecimento para o Graça. Queixava-se por exemplo, em tom impregnado de melancolia, que a sua mulher simplesmente desprezava, não fazia caso de uma das maiores invenções do engenho humano. A rosca. Parece brincadeira mas nunca que ela fechava qualquer rosca. Fosse de garrafa térmica, ou frasco de adoçante dietético. Tivesse rosca, ela não usava. Ou melhor, não fechava. O pobre do Graça sempre na maior aflição para que o café não esfriasse e o dietético não esparramasse pela mesa.

Dizia num misto de irritação e desalento:

"Agora ela deu de roncar à noite e dormir a seu lado tornou-se absolutamente insuportável. Suas abluções matinais, quando inicia o ritual particular de lavagens, são impertinentes. De uns tempos para cá se deu ela ao temerário desplante de freqüentar uma seita, aquela mesma que tentou salvar o Tim Maia. Virou praticante empedernida. Para ela, tudo na vida agora tem uma razão de ser e de viver, mercê os grandes ensinamentos dos espíritos de luz e do Mestre Tashiro Yamamoto. Uma chatice monumental."

Voltamos eu e o Graça, à Chicago um ano e meio depois daquela aventura memorável e soubemos que a Cindy havia morrido. Vítima de aids. Foi um choque. Muito mais para o meu amigo e vocês lembram da noite de loucuras que resultou naquele riso cretino estampado na sua cara lavada.

Pois bem, arquitetou então, o Graça, maléfico plano contra sua cara-metade. Havia lido em alguma revista velha encontrada em algum consultório médico que às vezes pessoas que tiveram contato direto com o vírus não apresentam sintomas nem estão devidamente contaminadas. Mas carregam consigo o funesto vírus e podem inocular outras pessoas. Sua vingança seria maligna. Voltou da viagem mais amoroso do que nunca. Não havia noite que o fizesse esquecer as suas obrigações matrimoniais. Era muito amor.

Mas os chatos não morrem...

O tempo passou, a empresa fechou, mudei de profissão. Os nossos caminhos se separaram. Certo dia encontrei em um café muito do chic no Shopping Center ela, a esposa do Graça. Disse-me quando por ele perguntei que o meu amigo havia passado dessa para uma melhor. Havia morrido de uma moléstia misteriosa. Foi definhando, definhando, ficou só pele e osso e finalmente bateu as botas. Deixou-a porém, em boa situação financeira pois ela, prevenida como sempre, havia feito um seguro de vida no nome dele cuja beneficiária seria ela própria. Já havia até comprado um carro. Agora ninguém mais a segurava ao volante daquele Ford Kar vermelho. É os chatos não morrem mesmo. Ao final da conversa pagou com cartão e saiu toda serelepe. Foi quando percebi que havia deixado a garrafa térmica e o adoçante abertos. Deixara as roscas sem fechar.

Pobre Graça.

hucaldas@gmail.com

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