terça-feira, janeiro 29, 2008

DIVERSIDADE CULTURAL NO CARNAVAL DE PERNAMBUCO


Aline Chaves Alexandrino
(Foliã Juramentada)

Começo essas considerações afirmando que escrevo com a autoridade que os meus quase 60 anos de carnaval pernambucano de rua me dão, tendo feito o ensino fundamental na rua Imperial e pracinha do Diário, graduação nas ladeiras de Olinda e pós-graduação no Galo da Madrugada. Em segundo lugar sou absolutamente neutra, uma vez que nunca pertenci a qualquer agremiação (porque quero participar de todas) e aprecio tanto a simplicidade do bloco de sujos quanto a grandiosidade do Galo. Finalmente, ressalto que não tenho preconceito com qualquer ritmo ou melodia, de qualquer local deste planeta, desde que me toquem a alma, o corpo e o coração. Isso posto, já posso começar a radicalizar em relação à música de Carnaval de Pernambuco.

Moro numa rua por onde passa um bloco já tradicional no Recife: o Cabeça de Touro, do Engenho do Meio. É uma festa maravilhosa que ocorre no sábado antes do de Zé Pereira e mobiliza toda a população do bairro e adjacências. Entretanto, de uns anos pra cá tenho ficado insatisfeita com o que tem acontecido com o Touro e não somente com ele, a pretexto de uma tal de diversidade cultural: o percentual de músicas que não são do Carnaval, e que durante o mesmo são executadas pelas orquestras que acompanham os trios elétricos (com a honrosa exceção da Frevioca, e das exigências de Enéas no Galo!), é muito significativo.

Isso se justificaria se Pernambuco não fosse o celeiro cultural que sempre foi e não tivesse músicos de primeira linha, na questão do Carnaval. Só de memória falo de Capiba, Nelson Ferreira, Carnera, Zumba, Levino Ferreira, João Santiago, os irmãos Valença (dentre os que já se foram) e Getúlio Cavalcanti, J. Michiles, Alceu Valença, mestre Salu, os maestros Spock, Duda, José Menezes, Ademir Araújo, o excepcional Claudionor Germano, para não falar no multicultural Antônio Nóbrega e nos Madureira. Ainda assim sei que estou fazendo injustiça a muita gente mas é que a memória depois dos “enta” não é mais de confiança. Quem não estiver nessa lista me perdoe.

Também se justificaria a "diversidade" musical, se o frevo fosse tocado durante todo o ano, juntamente com os maracatus, caboclinhos, cirandas e côcos. Mas não é assim que as coisas acontecem. Alguém por aí já ouviu o frevo ser tocado durante as festas de São João? Ou nos desfiles de escola de samba? E durante os eventos de rocks, funks, pagodes, bregas e axés? Duvi-dê-o-dó!!!

Durante o ano inteiro temos que conviver com o que a indústria cultural (?!) nos enfia goela abaixo, num nível de descarte e de superficialidade que assustam, desencantam e desiludem. Onde estão a delicadeza e o lirismo dos frevos de bloco, com os corais femininos tão afinados? Em que emissoras se escondem os metais endiabrados dos frevos de rua que parecem chamar os passistas e suas sombrinhas (exceção para o programa de Hugo Martins na Rádio Universitária)? Em que programas se podem ouvir as flautas dos índios, os tambores do maracatu e o toque da ciranda e do côco, que nos dão a certeza da nossa origem multifacetada como povo?

Esses sons só aparecem no Carnaval, nas ladeiras de Olinda, atrás das orquestras no chão espremidas pelo povo (como devem ser as orquestras no Carnaval), molhadas de suor ou de chuva, com os músicos disputando o ar das ruas com os foliões e tocando, mesmo quando a gente acha que não vão agüentar mais. Surgem de mansinho nos becos do Recife Antigo, atrás dos blocos dos mascarados, dos namorados, das crianças e dos boêmios. Durante o resto do ano o frevo silencia e só há tempo e espaço para outros sons e ritmos.

No entanto, o Carnaval de Pernambuco mostra sua força quando o Galo da Madrugada sai, como todo ano, com uma multidão colorida e iluminada, só cantando a nossa música. O mundo todo vê a apoteose daquele coro de milhares de vozes porque, como dizia Vinicius de Moraes, “mais que nunca é preciso cantar, e alegrar a cidade...” É emocionante ouvir a multidão cantando “Voltei Recife...”, “Roda, roda, roda e avisa...”, “Ao som dos clarins de Momo”, “Batutas de São José, isto é, parece que tem feitiço”, “Ei pessoal, vem moçada”, e entoando “...frevo, frevo...” nos intervalos das orquestras. É bem diferente de ouvir "ela é problemática...", ou "beber, cair e levantar...", até a exaustão.

Nosso Carnaval é multicultural porque tem um acervo respeitável de cultura popular, representada pelo frevo, maracatu, ciranda, caboclinhos, côco, caiporas, papangus, bois, ursos e cavalo marinho. Precisa mais?! Portanto, a partir de tudo isso, e do fato de que a nossa música carnavalesca é escanteada no resto do ano, é que acredito que, a não ser que isso se modifique, somente ela deveria reinar no período de Momo. Nós já somos multiculturais e já temos diversidade. Por que temos obrigação de importar outros ritmos e sons, se temos um acervo que dá e sobra para o Carnaval?!

Ao contrário, é preciso que incentivemos o aparecimento de novos compositores e intérpretes, a exemplo do que acontece com a orquestra de Spock que dá uma nova roupagem ao frevo, porém não esquece as origens. Ou como já vinha acontecendo com Getúlio, Michiles, Alceu, Nóbrega e os Madureira, que têm feito uma releitura do canto, da música, e da dança carnavalescas, com o maior sucesso. Poder-se-ia até conceder que, ao invés de cantarmos o que se ouve durante o ano inteiro, a ponto da exaustão (para não dizer da náusea...), utilizássemos tais canções em ritmo de frevo, maracatu e caboclinho. Mas nunca, sob nenhuma hipótese, supor que nossa cultura não é suficiente para preencher os dias de Momo.

Nós pertencemos a um Estado diferente (nem melhor, nem pior) de todos deste país, porque mantemos de forma praticamente eqüitativa a influência das três raças que nos formaram e que até hoje estão nas nossas caras, corações e mentes. Uma terra que tem os músicos que citei anteriormente, um Estado tão original que até seu próprio nome é formado de letras que não se repetem, não precisa importar músicas para a sua festa maior. Se nós, pernambucanos, não defendermos a nossa cultura, quem há de? Se nós, descendentes da mistura de mamelucos, cafuzos e mulatos, não demonstrarmos o nosso orgulho multirracial, e multicultural, quem o fará? Precisamos preservar, incrementar e divulgar esta música tão rica e bela que encanta a todos, brasileiros ou não, que aqui chegam durante o Carnaval.

Além do mais, o turista que vem a Pernambuco vem porque quer ver algo diferente. Quer saber qual é o nosso diferencial. E a desculpa de que tem gente que não gosta de Carnaval e não quer ouvir só o frevo não cola: quem não gosta de Carnaval fica em casa ou vai à praia, e quem não quer ouvir a nossa música carnavalesca, tem todas as outras para curtir durante todo o ano. Deixem o Carnaval para o os nossos ritmos!...

Sei que estou comprando uma briga e já vou arranjar uma proteção contra as pedras, mas é por tudo isso que falei, e por mais uma enormidade de coisas que não sei dizer (só sei sentir quando entro na rua da Concórdia com o Galo), que declaro em alto e bom som que, enquanto a nossa música carnavalesca não tiver a divulgação que merece durante o ano inteiro, protesto contra esta "diversidade" cultural. E finco pé na reafirmação da multiculturalidade do Carnaval de Pernambuco!

3 comentários:

Anônimo disse...

Dearest
Dissete-o bem. Nem mais nem menos. O essencial sobre o carnaval. Spock é realmente a bela surpresa destes últimos 15 anos. Nós dois convivemos um certo tempo com o João Santiago e de uma certa forma acho que seu texto o homenageia. Me emocionaste, oh mulher! Bedjs mil. Hugão

Anônimo disse...

Como estou feliz! Uma das minhas escassas leitoras, essa brava Aline, sai-me com esse artigo corajoso, bem informado, correto. E deliciosamente bem escrito. Não tenha medo das pedras, Aline, estamos aqui para ser apedrejados mesmo! Esse negócio de prevaricarem com o Carnaval da gente é o cúmulo da sacanagem. Faz parte da merdice geral do país, que tem vergonha de tudo que é autenticamente brasileiro e pernambucano. Eta povinho bunda! Ainda bem que temos um povão macho, que mantém essas coisas boas, insuperáveis, a salvo dos hunos da cultura, americanalhados, afrescalhados e chatos. Quem tem frevo e maracatu, quem tem as marchas maravilhosas do Recife, não precisa dessas merdas. Pau neles, Aline!
Riobaldo Tatarana

Anônimo disse...

Temos a maior sorte do mundo de termos nascido e crescido num Estado tão rico culturalmente, tão forte de tradições. Somos um Estado de lutas e resistência, apaixonados pelas nossas raízes. Devemos, como você, divulgar o orgulho pelas nossas tradições e não temos por quê darmos espaço ao que não é nosso. Cada um que cuide do que é seu. Obrigada por nos lembrar tudo isso de bom. Beijos.