sábado, fevereiro 16, 2008

Recuerdo 29 - O "RARA AVIS"


Hugo Caldas

Estava eu posto em sossego uma certa tarde de verão, lá pelos idos de 1988, terminando de preparar uma das minhas aulas, quando me chega o filho mais velho do primeiro casamento, querendo ter "uma conversa de homem para homem." Com 21 anos à época achava-se, dizia, cansado de tentar viver decentemente neste país.

- "Pode tirar o cavalinho da chuva pai, disse-me. Não vou fazer vestibular nenhum. Botar canudo debaixo do braço e sair por aí penando por um trabalho? Não é comigo." Sentia na carne o exemplo da irmã, formada há dois anos e até aquela data não havia conseguido um emprego decente. "Estou decidido a deixar o país. O que acha?"

Ora, o que eu achava! Um suor frio correu pelas minhas costas. Não achava nada. Sempre fui meio "pãe" querendo, que nem um enorme galináceo ter os meus rebentos eternamente protegidos embaixo da asa. Mas tratava-se da sua vida. Ele estava ali na minha frente pronto a seguir seu destino, decidir os seus caminhos. Eu não tinha o direito de interferir nos seus planos. Era já maior de idade, eu não poderia fazer nada em contrário à sua decisão. Mesmo se pudesse, não o faria. Jamais fui de proibir o que fosse. Havia ele feito um curso de mergulhador da marinha, era bom fotógrafo e bom músico. Essa a sua bagagem. Silencioso, voz presa na garganta aceitei o que me era jogado na cara.

Lembro até hoje o dia da partida do meu filho, em um pequeno barco chamado "Rara Avis" uma escuna, talvez um iate? Quatorze metros por quatro. Não, não era lá tão pequeno assim. Tenho e guardo com o maior carinho uma foto do iate indo embora. Fiquei, ali na praia, a olhar o barco se afastando, eu me fazendo mil perguntas, me imaginando no lugar dele. Muitas preocupações, até pedi que ele se amarrasse numas cordas que havia visto no convés, em caso de tempestade, e que usasse sempre um casaco de couro que lhe havia dado, para se abrigar.

O barco se afastava, e vinha-me à cabeça as coisas que nunca fiz e que nunca iria fazer, provavelmente por falta de coragem mesmo, neurose, provincianismo. Admiro muito o meu filho, por sua ousadia, pelo seu empreendimento. É, nunca tive a coragem dele. Quando cheguei ao Recife constatei à maneira de Cícero Dias, que o mundo começava aqui, e por esta razão ainda havia muito por descobrir. Fiquei. Hoje, passados os anos é frustrante constatar que estamos na reta final. E não fizemos absolutamente nada. Que chegamos ao fim da jornada. Agora, não há mais tempo. No final das contas, a gente se arrepende mesmo é do que deixou de fazer.

Para ele, tudo começou com um barco encalhado em Olinda. O comandante do "Rara Avis", um argentino, queria porque queria, desencalhar a embarcação e para isso contratou os serviços de um rebocador no cais do porto. Ao cabo de algumas horas de infrutíferas tentativas, terminaram por desistir ao constatarem que baldados seriam todos os seus esforços. Melhor seria mesmo seguir o conselho daquele rapazola de ar inteligente que havia assegurado que o barco se descolaria sozinho na maré alta do dia 15 de agosto. Estavam ainda em final de julho. Teriam que esperar.

Foi o tempo que o gringo aproveitou para voltar a Argentina na busca de mais numerário. As operações com o rebocador lhe haviam dado uma grande quebra de orçamento. Ele teria que levar o barco para a venda em Miami. Meu filho ficaria então encarregado de tomar conta da embarcação, espécie de imediato e procurar alguns amigos que se dispusessem a seguir viagem como tripulantes. E assim foi!

A vida nos prega muitas peças. Quando ele era pequeno, vivíamos mais perto mais intensamente, nos víamos praticamente a qualquer hora. Hoje, tinha um filho homem que não convivia comigo. E agora aquilo era uma despedida. O barco se distanciava. Silhueta da vela cortando o horizonte. Momento para sempre eternizado. Naquele instante eu sabia que o meu filho estava ali, dentro daquela casca de noz. Quando iria vê-lo novamente? O medo de algum acidente. O barco se afastando. As cordas do convés. O barco a se afastar mais ainda. Tudo zunia na minha cabeça. Desabei. Era demais. Fui embora, chorar em casa. Para o meu filho Trajano foi o início de uma vida inteiramente nova. O "Rara Avis" cumpriu o seu destino.

hucaldas@gmail.com

6 comentários:

djanirasilva disse...

Seria bom que todos os pais tivessem a coragem não de deixar e sim de estimular os filhos a fazerem os seus próprios caminhos. Os pais muletas atrofiam os filhos para o resto da vida. Sabemos que a dor da separação é grande, isto entre nós os humanos, porque no reino animal as crias são obrigadas a seguirem seu próprio destino. Parabéns para você por ter se esquecido de si para pensar no outro. Djanira

Anônimo disse...

É isso meu irmão, hoje olhando as Cezas do chocolate, resultado dessa aventura do Trajano acredito que pensas " Ele reflexo de te levou consigo muito da coragem que certamente descobriu nos teus olhos,serenos e puros que mesmo no silencio dizia: Vai! e faz o que eu queria ter feito". O que são os filhos senão reflexos do que fomos e ensinamos e as vezes nos negamos a admitir se ousam mais que nos. Viva Trajano e sua coragem de ousar.Nele encontro muito de te dessa grandesa que ensina que sonhar e acreditar ainda é possivel nesse Pais.Salve Dom Hugo meu Primo e meu irmão.

Anônimo disse...

Hugão, se isso te serve de consolo, também eu encalhei no Rio, e aqui fiquei vivendo uma vida medíocre, trablhando como jornalista, publicitário, professor, até chegar à velhice e constatar que não tinha feito nada de relevante. O pior é que quando temos a sinceridade de confessar isso, sempre aparece alguém pra dizer "que nada, você, trabalhou, fez filhos, criou sua família." Ora, isso qualquer galinha faz melhor do que nós. O problema é o que fizemos da nossa vida. Lembro de um livro medíocre, "Do sindicato ao Catete", as memórias do Café Filho, em que ele tem essa frase: "Aprendi que a imprudência sempre paga melhor que a cautela. Se eu tivesse sido prudente, seria até hoje um medíocre dirigente sindical em Macau". O pior é que tive mil e uma possibilidades de sair, de conhecer outros mundos e outras pessoas, entrar numas. Mas o provincianismo, a neurose, a babaquice, falaram mais alto. E agora é tarde. Carlos Mello

Anônimo disse...

Hugo,

Fiquei muito emocionada com o que escreveste sobre teu querido filho. Seguramente, o "RARA AVIS", foi um importante e mágico passo na vida dele. O espírito de Trajano era livre e suas asas douradas, cheias de luz só poderiam seguir os caminhos dos ventos. Dos ventos que estão em todos as partes e em nenhum lugar ao mesmo tempo. Para mim, foi um marco eterno a sua partida do Brasil. Também desabei de uma maneira fortíssima...Mas já estava sozinha. Eu tinha, naquela época, 23 anos. E claro que não estou me comparando contigo, pois és o pai dele. Levar Trajano em meu coração foi a única maneira de estar feliz pela sua liberdade e por suas buscas pessoais. Para Trajano, todo meu eterno carinho, respeito, admiração e minhas boas orações. Um enorme abraço para ti Hugão, e olha, te cuida muito, tá? Liana.

Anônimo disse...

Com esse nome Trajano jamais poderia ser acomodado e, sendo filho de Hugo — que vê o mundo de forma sensível —, é claro que ele tomaria a decisão de ir para novas paragens, com o sabor gauguiniano, de ver novas cores, novas luzes, como fez o pintor francês quando da primeira vez que partiu da França para Martinica, na busca de novas inspirações. Tem pessoas que são assim, como Trajano e Gauguin, que não se conformam com uma luz, uma paisagem e uma cultura: precisam de mais! E a foto que o cronista se refere, é uma pequena lembrança não somente do filho que parte, mas também das pinturas de Turner, nostálgicas e misteriosas...
As lembranças fluem seguras na pena de Hugão, e a gente vive aqueles momentos bem perto, como se tivesse vendo o rapaz Trajano já no barco com o casaco de couro dado pelo pai com o sentimento que aquele objeto não o deixe receber o frio do mar e as intempéries naturais, é coisa de pãe mesmo!

Márcia Barcellos da Cunha disse...

Estimado primo. Que emocionante seu relato!
Dá para imaginar o coração de pai sofrido como não poderia deixar de ser, mas plenamente consciente da nova etapa de vida que surgia para seu filho Trajano.
Significativo dar o casaco de couro, simbolizando proteção, amparo e abraço...
Lindo demais!!! Não tem como não chorar.Um grande abraço. Márcia