terça-feira, março 11, 2008

Solidão


Djanira Silva

Saber que alguém nos espera, apressa-nos os passos, diminui as distâncias. O olhar de espera encurta os caminhos. Desceu a ladeira em direção à várzea. Avistou a casa. Já não era a mesma. O sol batia de frente iluminava o alpendre que parecia maior. O vazio ampliava-lhe os limites. Aproximou-se, abriu o portão. As pernas tremiam, as mãos tremiam, o coração, de vez em quando, ameaçava parar. O seu presente agora limitava-se com o desconhecido. Chovera à noite. A várzea cheirava a mato verde, um cheiro de saudade e de ausência. Era a primeira vez que ia ali depois que ficara sozinha. O portão ainda gemia como antes. No jardim as roseiras carregadas de cachos e botões, cor e perfume. Sentiu a presença dele. Era como se estivesse ali, olhando por cima do seu ombro. Virou-se esperando vê-lo.

Colocou a chave na porta. Lá dentro, a alma fria do silêncio. Na presença do invisível sentia-se covarde. Agora, tinha medo de tudo: de não ouvir, de não ver, de não saber, de ver o que não queria, de sentir a dor, o sofrimento consumindo-lhe a alma. Não se reconhecia. Precisava de coragem para enfrentar a alma cheia de lembranças. Em todos os lugares ele estava. Na cadeira de balanço, no jardim, no perfume das flores, na rede atravessada no terraço, onde descansavam depois do jantar. Era ali que o encontraria sempre e não no cemitério, na frieza das paredes ou na aridez do chão. Caminhou até o quarto. A cama, o guarda-roupa, a poltrona onde ele cochilava depois do almoço. Sentiu seu cheiro de sair, nas camisas, nos lenços, nos paletós. Nos pijamas, nas fronhas, nos lençóis, seu cheiro de ficar. Sentou-se na cadeira junto da cama.

De manhã, logo depois do café ele pegava o chapéu, tirava o relógio do bolso do colete, dava-lhe corda recolocava-o de volta com a mesma elegância; olhava-se no espelho do porta-chapéus, alisava o bigode, passava a mão nos cabelos, ajeitava o paletó. Um ritual importante. Esperava o entardecer para ouvir o portão avisar que ele chegara As lembranças refletiam-se por toda parte como reflexos de sol num espelho. Tudo aconteceu muito rápido. Era difícil aceitar as mudanças. Não voltaria ao lugar onde fora deixá-lo naquela manhã.
Não gostava de se queixar. Tinha pudor dos seus sofrimentos. Preservava-os da curiosidade alheia. O que poderiam saber as pessoas da solidão, da tristeza de quem fora feliz? Fingia para poder sofrer em paz. Já não era importante para ninguém. Não havia que a esperasse na volta.

Antes nada temia. Agora, assustava-se com o anoitecer, com o escuro do silêncio e, nas trevas nos abismos da solidão recebia aquele momento difícil, o de ser sozinha. No silêncio escondia a verdade, as palavras que não ousava dizer. Sombras dentro da casa, dentro da alma. No jarro da mesa flores murchas. As cortinas fechadas. Um cheiro de nada, a falta, a cama vazia. No chão o tapete sombrio, um couro morto, estirado no meio do quarto. Acendeu a luz. Estremeceu. Fechou a porta para não ver o escuro do corredor. Temia os movimentos das sombras. Não se preparara para ser só. Como é que a gente se prepara para a solidão?

Acendeu todas as luzes, abriu todas as portas. Quem olhasse de longe, veria a casa iluminada num perigoso silêncio. Naquele fim de tarde com o sol se pondo, as árvores numa intimidade com frutos e folhas pareciam sussurrar, contar segredos. Agora sabe que solidão não é apenas se estar sozinho é não ter com quem dividir dores e alegrias.

O silêncio gemia e provocava em seu corpo espasmos de medo. Sentia-se invisível. Não sabia se quem estava ali era o corpo ou a alma. As últimas nuvens coloridas do final de tarde se espalhavam pelo céu, puras, fluídas, como claras em neve. De repente, o róseo transparente se partiu abrindo caminho para um anoitecer tranqüilo.

Estava cansada “morrer, dormir, talvez sonhar, quem sabe?” Adormeceu como quem morre ou desmaia. Ainda assim, mantinha os sentidos em alerta. O cheiro da terra envolvendo-lhe o corpo. O canto dos pássaros enganando-lhe os ouvidos “morrer, dormir, não mais...”

A sala cheia de silêncio, não, não é a sala é a alma, não, não é a alma é o mundo. Ele estava ali sempre estivera. Aos poucos, sentiu que precisava terminar o que começara em outro silêncio. Dentro dos olhos o mundo se apagou

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