quarta-feira, maio 07, 2008

LADEIRA ABAIXO


Riobaldo Tatarana


No geral, não há nenhuma vantagem em ser velho. Mas como no Brasil tudo é diferente, descobri uma vantagem na minha idade provecta: não terei que aturar por muito tempo ainda a opereta tediosa em que se transformou esse belo país. E não adianta tapar os ouvidos, deitar na areia da praia que nem o João Valentão, e fingir que não é com você. As notícias chegam, pela internet, pela tv, e até pela loquacidade da D. Mira, que reproduz à sua maneira tudo que escuta nos telejornais.

Somente esta semana registraram-se:

1) o milionésimo naufrágio nos rios da Amazônia com centenas de vítimas, em navios já condenados pela Capitania dos Portos, e que trafegam tranqüilamente pra cima e pra baixo com excesso de passageiros;

2) a centésima milionésima falcatrua envolvendo funcionários públicos federais, estaduais e municipais, com direito a aparecerem algemados em primeira página de jornal, para no dia seguinte obterem ali na esquina o competente habeas corpus e irem para casa usufruir da roubalheira;

3) o centésimo escândalo envolvendo “celebridades” – como esse otário Ronaldinho, um fenômeno de obesidade e obtusidade;

4) mais uma “aposentadoria” milionária concedida a supostas vítimas da ditadura – no caso, Ziraldo e Jaguar – que jogaram no lixo tudo o que podíamos dizer de bom sobre eles.

Por tudo isso, meus amigos, tenho dito que o problema da safadeza brasileira não atinge somente nossos bolsos e nossa “imagem” (qual?!) lá fora. Atingem sobretudo nosso combalido estômago, obrigado a digerir tanta patifaria, desde o olhar fingidamente surpreso do Lula diante da sucessão de escândalos, até o olhar de vestal do FHC, tão sem-vergonha quanto seus sucessores. E haja chá de boldo, haja o carinho de minha santa mulher, haja água de coco e rede na varanda. Um dia desses vi, num desses canais tipo Discovery, uma matéria sobre uma tribo desconhecida, que mora numa ilha perdida na Oceania, um povo primitivo, que anda pelado e vive da criação de bacorinhos. Moram em choças, andam bem sujos, são feios de doer. Mas como riem, como se abraçam, como acham graça em seu próprio trabalho, em suas caçadas pela floresta, em suas crianças. Fiquei pensando comigo: esses caras são incomparavelmente mais felizes do que nós. Eles não têm tv nem internet, nem planos de saúde ou de aposentadoria. Mas também não têm lulas nem efe-agá-cês, nem ziraldos nem jaguares, devem portanto possuir um trato gastro-intestinal de primeira ordem.

Quem leu Os Maias – parece que ainda há uns dois ou três velhinhos, contando comigo, que ainda lêem Eça de Queirós - deve lembrar do desabafo do Carlos da Maia diante da fofocagem reles de Lisboa: “a mim, está a apetecer-me uma cubata na África”. Um outro companheiro, já falecido, antes de ir embora declarou aos amigos que tinha um sonho: vender amendoim torrado em Port-au-Prince. Porque esse é o único sentimento que nos resta, ir embora, ainda que seja para uma cubata no centro da África, ou para a miséria haitiana, por absoluta incompatibilidade entre nosso estômago e o que se passa diante dos nossos olhos. Por que será que ficamos tão safados? Que fenômeno antropológico e sociológico é esse, de uma nação que de repente perde a vergonha na cara, joga o pudor no lixo, e exibe-se de calcinhas sujas diante do mundo? Como chamaríamos essa epidemia? Síndrome do deputado?

Nosso desaparecido Lalau tinha uma expressão excelente para significar algo que ultrapassava os limites da safadeza: “é de encabular senador”. Isso, num tempo em que ainda havia tanta gente de caráter, tanto intelectual sério, de esquerda e de direita, havia um Tristão de Ataíde e um Gustavo Corção, um Carlos Prestes e um Brigadeiro Eduardo Gomes ou um Teixeira Lott. Você podia não concordar com o que eles diziam, mas não tinha como acusá-los de falta de honradez. Tristão e Corção, homens de vastíssima cultura e inteligência, passaram anos brigados por um desacordo puramente intelectual, tal a seriedade com que encaravam suas convicções. No final, fizeram as pazes, Tristão teve a grandeza de dirigir-se à casa do desafeto e pedir-lhe perdão, e o velho reacionário, sem conter as lágrimas, limitou-se a beijar-lhe as mãos. Dois gigantes de dignidade, uma espécie em acelerada extinção no país. Prestes, o Brigadeiro e Lott terminaram quase pobres, porque “contentaram-se com seu soldo”, como manda a Palavra de Deus.

Repito a dúvida camoniana: será que no assento etéreo para onde subiram esses grandes compatriotas, se consente alguma memória dessa vida? Não sei. Mas sei que Deus é bom, o amor é a qualidade que define o Todo-Poderoso. E por isso mesmo, creio que Ele não consente a esses homens e a muitos outros homens e mulheres da memória nacional para sempre passada – que tenham acesso ao Brasil de hoje. Pois como não podem morrer novamente, certamente sofreriam muito ao ver o que estamos vendo. Ó companheiros do blog, vocês que são sábios, o Grisi que nos brinda com seus doutos ensinamentos, a Aline, que não suporta safados nem safadezas, o Valdez, que foi juiz e é homem inatacável, o próprio dono do pedaço, esse Hugo que continua a indignar-se com o que vê, ajudem-me! Digam-me que estou enganado, que ao menos sobramos nós e mais uns três gatos pingados, que as novas gerações serão diferentes. Ajudem esse velhinho a terminar seus dias sem tanta amargura. E se tiverem algum bom remédio pro estômago, forneçam-me, por favor, o nome.

Um comentário:

Anônimo disse...

Caro Riobaldo
Li com enorme prazer o "Ladeira abaixo", um texto que nos fala intensamente do modo como as pessoas de alta inteligência e sensibilidade se estão sentindo nesses tempos de escuridão e canalhice generalizada. Lembrei-me de uma passagem de Gorki ("As minhas universidades"), em que fala dos intelectuais que tinham virado "estrangeiros em seu próprio país", atolado no "pântano viscoso de mesquinharias e imbecilidades". Realmente "a miséria é nossa". Gondim da Fonseca tinha toda a razão. Presenciei algumas coisas como esse "avanço" na bela mesa nordestina. A Fundação Getúlio Vargas teve de suspender o almoço anual que dava aos funcionários exatamente por causa disso. As travessas de comida eram entornadas de ponta a ponta sobre sacolas de plástico, levavam tudo, tudo e, quando sumiram os próprios prato e talheres, a direção acabou com o rega-bofe. Depois, vi colegas meus, da mesma instituição, saqueando a baixela de um restaurante, no almoço do fim do ano. É aquilo de que lhe falei: manada, manada de porcos, e cada vez mais repleta de demônios.
O português é tratado da mesma forma, ao sabor e dissabor da estupidez vandálica. Virou, aqui, uma língua abjeta, sarapatel ignorante feito de solecismos e "ingreis" da praça Mauá. A história do Ziraldo, também a acompanhei. Não sabia que o Jaguar também estava nessa. É uma terra asquerosa. Olhe, meu caro, o Carlos Eduardo, além de tudo, era um profeta, no tempo e no espaço: nada como uma cubatazinha nas Áfricas. Grande abraço do Mauro.