quinta-feira, julho 24, 2008

"Zé Bolinho"


Elpídio Navarro

Uma das pessoas importantes que passaram pelo Theatro Santa Roza, foi o maquinista (denominação dada aos operários do palco) Zé Bolinho. Seu nome de batismo - José Xavier da Silva - lembrava Tiradentes. Mas ele, ao contrário, não era mártir nenhum. Era uma figura que não sabia negar nada a ninguém, mas também era um tanto esperto. Das histórias de Zé Bolinho, conheci muitas e estive presente em algumas delas.

Sua fidelidade ao time do Botafogo da cidade de João Pessoa e ao bloco carnavalesco Índios Africanos, do bairro da Torre, era à toda prova. Gastava o dinheiro que pudesse com essas suas paixões.

Num das vezes que estava eu diretor do Theatro Santa Roza, chegou-me a notícias que dos nossos espanadores só restavam os cabos. A plumagem, de pavão, de todos, havia desaparecido. As fofocas atribuíam a responsabilidade ao nosso Zé, que a teria usado nas fantasias dos "caboclinhos". A acusação espalhou-se tanto que me senti na obrigação de chamá-lo para esclarecimentos. Então ele foi taxativo: "Seu Erpídio, os africanos só usam penas de galça..." Mandei providenciar a aquisição de outros espanadores.

Ele adorava época de eleição. Era quando conseguia construir uma casinha lá pros lados de Cruz das Armas, bairro onde residia. Prometia votos a vários políticos em troca de tijolos, cimento, telhas, madeiras e todo o necessário à construção de mais uma das suas fontes de renda: os aluguéis de seus casebres construídos por conta das suas promessas eleitorais. A gente nunca sabia em quem ele iria votar ou havia votado. Sempre afirmava: "o voto é secreto"!

Viajou muitas vezes com os nossos grupos de teatro, como responsável pela cenotécnica. Numa dessas viagens, sob minha direção, fomos a um festival de teatro em Ponta Grossa - Paraná. O espetáculo que levamos ("Cordel", de Orlando Senna) tinha como cenário enormes bandeirolas que deveriam descer do urdimento à cada início de cena. O palco do auditório no qual deveríamos nos apresentar tinha o teto baixo, não podendo assim esconder as tais bandeirolas. Sabedor antecipadamente do problema, o nosso cenógrafo, Breno Mattos, impedido de viajar conosco, preparou um mecanismo que prendia enrolada a bandeira, soltando-a quando fosse acionado. Mas lá, quando nos foi liberado o palco para que montássemos nosso cenário, constatamos que não estava funcionando o tal mecanismo criado por Breno. Já tarde da noite, após várias tentativas, Zé Bolinho prometeu: "pode ir dormir, seu Erpídio. Deixe comigo que eu resolvo tudo... " O espetáculo seria apresentado na manhã do dia seguinte. Ele nem chegou a dormir no hotel, o que me deixou mais apreensivo. Chegando ao teatro fui logo abordado por ele dizendo-me: "pode ficar tranqüilo, ta tudo em ordem". E estava mesmo pois a função aconteceu corretamente, na hora certa. Enquanto eu descia da cabine de controle de iluminação e tentava chegar ao palco, um tanto assediado pelas pessoas da platéia, Zé Bolinho já desmanchara tudo que ele havia feito e encaixotava nosso cenário. Perguntei por que e ele respondeu que não podia deixar os outros aprenderem o seu segredo. Posteriormente me contou: "Fiz um U!" Armou três pedaços de sarrafo formando a letra U. Prendeu a bandeirola enrolada com o tal U, como se fosse um grampo, preso a uma corda, que puxado fazia acontecer seu aparecimento. Simplesmente um U. Mas pediu segredo para o seu invento...

Mas entre outras várias histórias de Zé Bolinho a mais antiga delas, das que participei, foi logo nos meus primeiros momentos de atividade teatral.

O Teatro do Estudante da Paraíba estava encenando a peça Fim de Jornada, cujo entrecho dramático acontecia durante a primeira grande guerra mundial, tendo como personagens soldados ingleses. A direção era de Walter Oliveira e tínhamos como instrutor militar a figura simpática do General Edson Ramalho, na ocasião Comandante da Polícia Militar do Estado da Paraíba. Mas a colaboração decisiva dele não se resumiu apenas às informações de comportamentos dos militares da época, mas, também, à cessão de armas, fardas e equipamentos para compor o espetáculo. Por conta disso tudo nós fizemos uma apresentação para o pessoal da Polícia Militar, com o caráter de homenagem e agradecimento, que redundou na mais desastrada das nossas apresentações daquele espetáculo teatral.

O cenário era uma casamata, espécie de esconderijo subterrâneo camuflado no solo com pedras e arbustos, que escondiam a sua entrada e uma metralhadora antiaérea. A visão do espectador era de um cenário com dois planos: no piso do palco estava a casamata, onde acontecia a maior parte da encenação; num plano elevado, o solo do campo de batalha onde aconteciam cenas de ataques aéreos e revides pela metralhadora. O meu irmão Ednaldo Navarro interpretava uma sentinela que passava quase todo o decorrer do espetáculo no plano elevado, só descendo ao esconderijo na última cena para informar ao nosso comandante, papel desempenhado por Valdez Silva, que eu havia sido metralhado e morto num ataque de um avião alemão que continuava bombardeando lá em cima.

Ao final do espetáculo a casamata era destruída e caía o teto através de um truque feito com dobradiças que eram destravadas. Para dar a impressão de fogo, fumaça e poeira, espalhávamos em cima do teto pó de serra com talco comum, iluminação vermelha e focos amarelos intermitentes para dar uma idéia de explosões, claro que junto com os efeitos sonoros. Começamos a achar que a fumaça resultante do pó de serra com talco, que aparecia com a queda do teto da casamata, estava fraca, não convencia muito. Conversamos com José Xavier da Silva, o famoso Zé Bolinho, nosso maquinista, tentando uma solução para o problema e ele foi taxativo: “Deixe comigo que eu resolvo!”

A metralhadora estava sempre apontando para um lado, porque quando era detonada expelia as cápsulas das balas de festim para detrás do palco e, por isso, nós tínhamos muito cuidado para não mudá-la de posição.

Assim chegamos à cena final de Fim de Jornada naquele dia especial, com teatro lotado de soldados, cabos, sargentos, tenentes, capitães, só gente fardada. Eu fazia o papel de um sargento, espécie de ordenança do comandante, que recebia ordem para ir até lá em cima, no plano elevado, verificar como estava a situação e, ao chegar, era metralhado. Acontece que nesse dia uma tábua do piso do plano superior cedeu juntamente com uma das minhas pernas, que ficou presa e aparecendo na parte de baixo do cenário. Veio a rajada de balas e eu tive que cair morto fora do local marcado. Ao cair, bati na metralhadora que mudou de posição exatamente para o lado contrário. O sentinela desceu para avisar ao comandante e ao subir de volta, antes de também ser morto, passa correndo e pisa na minha mão calçando aquele famoso coturno militar. Ah, dor miserável! Foi quando aconteceu um incrível diálogo entre nós, naturalmente sem ser ouvido pelo público:

- Quando terminar o espetáculo vou lhe lascar, seu merda!

- Eu tive culpa, tive?!...

- Quero saber disso não, seu filho da puta!

- Oxente! E a minha mãe não é a mesma tua?!...

Mas a mambembada não ficou só nisso. Valdez sobe correndo e na posição em que ficara a metralhadora após o meu tropeço, puxa o gatilho. De onde eu estava podia visualizar os militares nos camarotes do Theatro Santa Roza, com as cadeiras na cabeça, para livrarem-se das cápsulas de bala que voavam para cima deles. Então veio o desastre maior: o teto da casamata arreia e provoca uma enorme nuvem de poeira para cima da platéia, que começa a tossir desenfreadamente. Zé Bolinho havia colocado uma porrada de cimento misturado com o pó de serra e o talco. Comentário de um soldado ao sair do Teatro:

- Foi a peça mais realista que eu já vi!


Elpídio Navarro é professor universitário,
dramaturgo e diretor teatral, além de editor
do www.eltheatro.com

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