terça-feira, outubro 28, 2008

UM GIRO PELO VELHO MUNDO

Luiz Gonzaga Lopes

Acabei de regressar de breve giro pelo Velho Mundo. Embora breve, o passeio foi suficiente para me ensinar muitas coisas. Não só a mim, mas a todos os componentes de nosso grupo, numa troca concomitante de conhecimentos. Nas conversas, informações iam e vinham, de lado a lado, enriquecendo os nossos saberes. Especialmente pelo sentido da visão, aprendi muito sobre a Antiguidade Grega, sobre a Renascença Romana, sobre os costumes de algumas nações pós-socialistas. Pela audição, nos bate-papos descontraídos com nossos irmãos brasileiros — todos simpáticos, alegres, brincalhões e tagarelas iguais a mim — muito aprendi sobre o linguajar de nosso povo. Acho que eles, em troca, devem ter aprendido alguma coisa comigo.

Nosso grupo compunha-se de cerca de 20 brasileiros, gente oriunda dos mais distantes rincões deste Brasil gigante, de dimensões continentais e de costumes diferentes. Havia gente de todos os níveis e atividades. No transcorrer das conversas, descobrimos ser predominante a participação de médicos (nove), em contraposição a dois ou três engenheiros, duas psicólogas, três professoras de nível médio, além de um ex-economista.

Certa manhã, quando grande era nossa animação à beira da piscina do navio, alguém, certamente por ter se excedido na bebida, suou frio, empalideceu, sentiu aquela tontura comum que dá em bêbado, as pernas enfraqueceram. Para recuperá-lo bastaria uma ducha fria e um café quente. Mesmo assim, um companheiro dele se dirigiu ao nosso grupo, perguntou se havia algum medico que pudesse prestar socorro ao beberrão. Quem primeiro se manifestou foi uma médica do Recife: “sou oftalmologista, e oftalmologista não é médico”. No mesmo instante, falou um amazonense com nome de índio. Praticamente repetiu as palavras da recifense: “sou ortopedista, e ortopedista também não é médico”. Logo ouviu-se uma gaúcha de Veranopolis: “não tenho o que fazer, sou apenas proctologista”. E, em tom gaiato, dirigiu-se aos demais: “alguém já ouviu falar que proctologista seja médico?”. Desse modo, um a um, todos tiveram voz, desde o dermatologista ate o psiquiatra. Chegou-se, por fim, a uma conclusão: de norte a sul e de leste a oeste do Brasil, não havia um médico. Felizmente, o portador da bebedeira, depois de vomitar, por si próprio sentiu-se curado. Para contentamento geral.

Nosso Brasil, de dimensões continentais, se não é capaz de produzir um médico, também sente dificuldade de unificar o idioma. Com os meus patrícios, cuja característica geral era a simpatia, aprendi muito. Aprendi sem a preocupação de querer aprender. Do mesmo modo, sem a preocupação de querer ensinar, devo ter-lhes ensinado muito. Não sei o quê. Contudo, foi-me possível registrar na memória alguma coisa do que aprendi.

Certa tarde, quando estávamos reunidos na mais alegre das conversas, uma de nossas patrícias, nascida em Santa Catarina, soltou um “UI” dos mais escandalosos. Seguiu-se um silêncio de expectativa sobre o que motivara tão estridente “UI”. Cheguei a pensar em barata, coisa passível de provocar “chiliques” em mulheres. Nada disso, entretanto, aconteceu. A nossa amiga, ofegante, segurando os seios para controlar a respiração, logo explicou: “foi um JACAREZINHO DE PAREDE que caiu perto de mim, passou por cima do meu pé e correu para debaixo de minha cadeira”.

Fiquei então sabendo que o tal “JACAREZINHO DE PAREDE” nada mais, nada menos era que uma pequena lagartixa doméstica.

No dia seguinte, depois de curtir dois ou três whiskies com um companheiro paranaense, presenciei a esposa dele aproximar-se e pedir-lhe que fosse comprar algumas PASTILHAS DE PROSA. Fiquei curioso, sobretudo quando ouvi a mulher dizer que precisava saber notícias da irmã, convalescente de uma cirurgia. Atento a tudo, acompanhei todos os passos do meu amigo, inclusive quando ele entrou em uma loja de celulares, dirigiu-se ao caixa e, após efetuar o pagamento, recebeu algumas fichas telefônicas. Quase caí para trás: descobri que a tradução de “PASTILHAS DE PROSA” era fichas telefônicas.

Enquanto isso, minha mulher fez amizade com uma companheira, também professora. A diferença entre elas é que minha mulher nasceu nos cafundós-do-judas, nas brenhas do norte, no Acre, enquanto a amiga pertence ao mundo civilizado da capital do Espírito Santo. A linguagem delas, portanto, difere muito, por isso mesmo dá gosto vê-las conversar. Numa troca de idéias sobre culinária, a vitoriense entregou a minha mulher uma receita de bolonhesa que envolvia um pacote de talharim, um queijo parmesão, molho de tomate, e DOIS MEIOS-QUILOS DE BOI RALADO.

Minha mulher leu e entendeu tudo da receita, inclusive o modo de preparar. Entendeu tudo. Menos os DOIS MEIOS-QUILOS DE BOI RALADO. Ante nossa curiosidade, procuramos pessoas das terras capixabas, que logo nos deram a tradução: “DOIS MEIOS-QUILOS DE BOI RALADO” é um quilo de carne moída.

Diariamente, à noite, depois do jantar, íamos ao teatro do navio e, de lá, ao piano-bar, que ficava no convés. Para se chegar ao piano-bar, passava-se, obrigatoriamente, por dentro do cassino, talvez como uma espécie de tentador convite ao jogo, sobretudo aos que sentiam alguma atração por apostas. Eu estava isento da tentação.

Ao conversar sobre isso com um companheiro, ele me revelou gostar de fazer uma fezinha e, mais de uma vez havia sido contemplado pela sorte com agradáveis prêmios. O último aconteceu ao ser sorteado para desfrutar um tour aéreo sobre a cidade onde residia. “Foi ótimo, ele disse, minha mulher e eu achamos uma delícia. O piloto sobrevoava a cidade lentamente, parava de vez em quando para observarmos melhor os monumentos, deu uma volta bem vagarosa em torno da torre da catedral, um colosso”.

Imediatamente compreendi, o meio de transporte utilizado foi o helicóptero. O entusiasmo do meu amigo era grande, sobretudo ao revelar ter sido aquela a primeira vez que ele e a esposa voavam em AVIÃO DE ROSCA.

No momento em que eu aprendia sobre as desigualdades no nosso idioma falado, o Governo assinava o decreto estabelecendo a reforma para a unificação do idioma escrito.

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi, Lula
Vossa Mercê sempre me surpreende com seus textos inteligentes. Esse, por exemplo, além de tudo é bastante instrutivo e engraçado. Próprio da sua verve e do seu bom humor.
Grato. Meu abraço.
Hugo