terça-feira, março 10, 2009

REMINISCÊNCIAS EUCLIDEANAS


Clemente Rosas

Corriam os primeiros anos da década de cinquenta, e eu devia ter doze ou treze de idade. José Gerbasi Furtado, meu companheiro da Arcádia Pio X, grêmio literário mantido pelos irmãos maristas, onde nos tratávamos como “nobres árcades”, me fez o convite: participar de reuniões cívico-patrióticas, nas tardes das quartas-feiras, na União Paraibana de Estudantes Secundários – UPES.

O presidente da entidade era Mário Silveira, depois sucedido por Iveraldo Lucena e por Wellington Aguiar, que lá militavam, ao lado de Evamberto Farias, Antônio Lins Rolim, Osvaldo Trigueiro do Vale, Valdir Santos Lima, Rosil Belli, Péricles Vitório Serafim e outros. O filósofo Vanildo Brito e o poeta Orley Mesquita também circulavam por lá. Uma vintena, talvez, de jovens idealistas, em busca de causas nobres a que dedicar suas energias. A sede ficava numa salinha da “Vila Caxias”, espécie de galeria mista de pequenas lojas e quartos para estudantes e solteirões solitários, localizada na rua Duque de Caxias, trecho entre o Ponto de Cem Réis e o Palácio do Governo, logo após a Livraria dos Estudantes.

A UPES, pelo que me parece hoje, havia surgido como uma alternativa de representação à Vanguarda Estudantil da Paraíba, entidade pré-existente, cuja imagem não era das melhores. Assim, as duas associações concorriam, fornecendo “carteiras de estudante” para desconto em entradas de cinema e passagens de ônibus, e propondo-se a arregimentar a juventude para lides intelectuais, deontológicas e políticas.

O presidente era um tipo quase carismático. Parecia empolgado por uma sublime missão a cumprir: livrar o Brasil dos maus políticos, educar e dignificar o seu povo, afirmar os valores nacionais, honrar a insígnia de “Ordem e Progresso” da nossa bandeira. A cada reunião cantávamos o Hino Nacional de pé, com a mão no peito. E tínhamos um livro de princípios, o “Código de Ética do Estudante”, de que ainda recordo alguns preceitos: “Elimina o burguês que vive em ti. A burguesia não é uma classe, é um estado de espírito...” “Sê brasileiro, não é difícil. Basta que sejas o que és, e não o que os snobs, ... e os internacionais querem que sejas”.

É oportuno lembrar que, naquele tempo, os partidos políticos constituídos não tinham qualquer apelo para os estudantes, ainda mais, secundários. E o velho PCB, em plena ilegalidade, era assunto de polícia. Chamar alguém de “comunista fichado” correspondia a injúria grave. Notórios mesmo, para a sociedade pessoense, além da respeitável figura do Desembargador João Santa Cruz, só o contador João Batista Barbosa, o “Batistão”, o advogado José Gomes da Silva, o “Zé Moscou”, e o dentista Leonardo Leal. Assim, nossos espíritos límpidos, como páginas em branco, estavam abertos a qualquer ideologia totalizadora. Em especial para aquela que não se contrapunha à crença materna, não contestava estruturas sociais, e exaltava o civismo, com um lema palatável a todos: ‘Deus, Pátria e Família”.

Pois outro não era o substrato doutrinário das pregações que ouvíamos. Falavam-nos das excelências da nossa “raça mestiça” (preferencialmente, de brancos e índios), dos “intrusos” que deveriam ser expulsos do Continente Sul-americano (ingleses, holandeses e franceses, que mantinham, como colônias, as Guianas), e mesmo do heroísmo de soldados alemães. Até que um novo acontecimento veio levantar “o manto diáfano da fantasia” e expor “a nudez forte da verdade”.

Com o mesmo endereço da UPES, surgiu enfim o Centro Cultural Euclides da Cunha, integrante da Associação (ou Confederação) dos Centros Culturais da Juventude, cujos filiados se intitulavam “águias brancas”. Seu idealizador? O velho Plínio Salgado, chefe dos “camisas verdes” de vinte anos atrás, criador do emblema do sigma e da saudação do “anauê”. Depois da tentativa bisonha de tomar o poder, em 1938, a que um jornalista de mau gênio deu o rótulo de “revolução dos covardes”, e do recesso a que foi condenado, como todas as forças de oposição à ditadura Vargas, o velho Integralismo voltava à cena, em nova roupagem.

Não poderia haver simpatias, em minha família, para essa doutrina, que empolgou a juventude de tanta gente ilustre. Meus avós paterno e materno eram liberais. Meu tio Danilo, admirador de Prestes, a ponto de batizar um dos seus filhos de Luís Carlos. Meu pai, simpatizante da esquerda. E meu tio Nelson, boêmio antes de tudo, não escondia o seu sarcasmo pelo fascismo caboclo, bem traduzido em um incidente que me foi contado pelo Dr. Edgardo Soares, seu companheiro na mocidade, e depois meu professor e Procurador Geral do Estado. Em um restaurante cheio de integralistas, onde foram parar os dois amigos, bebericando, meu tio comandou, em alta voz:

- Garçom! Me traga uma galinha verde assada!

O poeta Orley Mesquita, libertário como soem ser os poetas, já me havia alertado sobre aquelas fontes encobertas de inspiração dos nossos colegas da UPES. Lembro-me de que ainda escrevi para Mário Silveira, a esse tempo já morando em Recife, pedindo explicações, e, recomendado pelo meu pai, não me incorporei aos “águias brancas”. Permaneci, no entanto, na UPES, de que fui Secretário, quando Wellington Aguiar assumiu a Presidência. Depois, como não tínhamos sucessores, promovemos uma fusão com a Vanguarda, com o nobre argumento da unificação do movimento estudantil, daí resultando a Associação dos Estudantes Secundários da Paraíba – AESP. Nesta, ainda participei, como membro do “Tribunal Eleitoral Estudantil”, ao lado de Hermes Aguiar e Celso Japiassu, da organização de uma eleição em que os candidatos já não deixavam transparecer matizes ideológicos. Representavam apenas a classe média, de um lado, e o pequeno grupo de “ricos” da cidade, personificados em meus colegas José Valdomiro e Marcus Odilon Ribeiro Coutinho, do outro. Nosso candidato, Wilson Guedes Marinho, do primeiro grupo, foi o vitorioso. E quanto ao Centro Cultural Euclides da Cunha, teve vida efêmera. Como um balão furado, logo murchou e desapareceu.

Mas qual a razão, agora, dessas reminiscências? Simplesmente aproveitar o ano do centenário da morte de Euclides, para reconstituir um pequeno fragmento da história política da Paraíba que pode ter algum interesse para os estudantes de hoje. Meio século parece mais que suficiente para elevar acontecimentos à categoria de “históricos”. E cabe ainda a investigação sobre por que se deu ao autor de “Os Sertões” a condição de patrono de uma entidade de fins muito mais políticos que literários. Teria tido o cronista de Canudos ideias políticas? Ou, simplesmente, sua admiração pelo heroísmo dos nossos caboclos, a despeito de todas as ideias “científicas” em voga, à sua época, sobre a inferioridade dos “mestiços” (que ele próprio, contraditoriamente, incorporava), o credenciou para inspirar jovens que, de qualquer modo, lutavam pelo primado dos nossos valores, pela afirmação da brasilidade, pelo amor-próprio nacional?

No entanto, se algum dos velhos companheiros aqui referidos não gostar de ver-se recordado em suas experiências de principiante na política, antecipo minhas desculpas. Não considero desonra haver-se militado, em tempos tão verdes, num movimento que chegou a atrair figuras veneráveis, como Dom Helder Câmara, Santiago Dantas e Paulo Cavalcanti. E o tempo já mostrou amplamente como todos venceram em suas profissões, brilharam na política, ou cumpriram seu dever de cidadãos.

Concluo com uma reflexão de idoso, para a qual convido os jovens: o presente é lábil, tanto quanto o futuro é incerto. Quando este texto for lido, meu ato de escrevê-lo já será passado. Valorizem, portanto, a História – remota ou recente, geral ou particularizada – pois só ela, mestra da vida, tem valor permanente. Como nos versos de Carlos Drummond de Andrade, dando beleza ao paradoxo, apenas “as coisas findas, muitos mais que lindas, estas ficarão”.


Clemente Rosas é autor de “Praia do Flamengo 132”, livro de memórias do movimento político universitário nacional nos anos 1961-62, lançado em 1992 e em vias de reedição.

2 comentários:

Anônimo disse...

Belo artigo! Lembro bem desse tempo, do lugar e dos personagens, alguns meus amigos. Nessa mesma sala, o Wladimir Carvalho, o Hugo, mais um outro de que não lembro o nome e eu, criamos o Teatro Popular de Arte (TPA), para divulgar um teatro engajado em sindicatos, escolas públicas, bairros populares... A gente sonhava! Sonhos bons, dignos, generosos. A realidade posterior é que se mostrou um pesadelo. Carlos Mello

Anônimo disse...

Se a bruma do tempo não interferir, acho que assisti, na década de 50, a um comício do próprio Plinio Salgado que empoleirado na escadaria da Praça Antenor Navarro deitou uma falação que durou horas. Falava bem, "O Chefe". Fui levado à assistí-lo por um colega "Aguia Branca", do Pio X, a quem não guardei o nome.