segunda-feira, outubro 19, 2009

HONDURAS E NÓS

Clemente Rosas

A charge da página 10 do Jornal do Commercio, edição de 29.09.2009, vale por um discurso. Nela vemos um garçom com as feições de Hugo Chaves servindo, numa bandeja, um abacaxi ao nosso Presidente, que, com o chapéu de Manuel Zelaya enterrado na cabeça, leva à boca a bandeira brasileira, convertida em guardanapo. Essa situação embaraçosa e desgastante, em que nos meteu o manhoso Presidente da Venezuela, me faz recordar como conheci alguns dos que estão hoje na primeira linha da crise (embora – quero crer – não tenham tido responsabilidade na sua geração) e suam por encontrar uma saída honrosa para o nosso país.

Conheci Celso Amorim no Itamaraty, como um dos integrantes do que eu chamava a “turma do Samuel”, ao lado de Celso Terra e Ronaldo Sardenberg, nos idos de 1964. Todos jovens diplomatas brilhantes e idealistas, com simpatias à esquerda, cujas qualidades o futuro viria a confirmar (à exceção do Celso Terra, que morreu ainda moço, tentando heroicamente salvar um garoto do afogamento no Haiti, onde se encontrava em missão). Quanto ao Samuel Pinheiro Guimarães, hoje Secretário Geral do MRE e braço direito do Amorim, tornamo-nos próximos quando de sua breve chefia na Assessoria de Cooperação Internacional da SUDENE, onde eu trabalhava. Trazido do Rio pelo Superintendente João Gonçalves de Souza, logo identificou-se comigo, pelo passado comum de militância universitária, e, pela mesma razão, logo cansou-se da subserviência de João Gonçalves aos gringos, voltando para o seu emprego no Ministério. Nos dois ou três anos seguintes, em que veio representar o MRE no Conselho Deliberativo da SUDENE, eu já demitido, ainda atuei como seu assessor informal, preparando-o para as surpresas de uma tal “pauta extraordinária”, que costumava surpreender os conselheiros na hora da sessão.

Lembro esses fatos para explicar por que acredito na seriedade e na competência do nosso Ministro das Relações Exteriores. E confio na orientação da nossa política externa, que, salvo algumas barretadas a ditadores como Kadafi e Mugabe (por motivos geopolíticos, talvez), tem seguido no geral a linha do Governo FHC, como o demonstrou em artigo, há alguns anos, o ex-ministro Celso Lafer. E me constrange vê-lo agora, tenso como nunca esteve antes, tentando explicar o imbróglio em que nos metemos, sem saber como sair dele.

Com efeito, nosso incômodo protegido não está na condição de asilado. É um “hóspede” da embaixada, categoria não prevista no direito internacional. Assim, dá declarações e entrevistas, cerca-se de correligionários, incita à contestação do Governo local, faz da nossa embaixada seu escritório político: tudo que um asilado não poderia fazer. E nós abrigamos um presidente que, por querer perpetuar-se como tal, ferindo a Constituição do seu país, foi destituído por decisão da Suprema Corte hondurenha, ratificada pelo Congresso Nacional. Não fosse o exílio que lhe foi imposto, e a ausência de algum rito de “impeachment”, por aparente lacuna da legislação hondurenha, teríamos uma situação de perfeita legalidade para o Governo dito “golpista”.

E aí entra em cena outro velho companheiro, também protagonista do espetáculo, de meu conhecimento pessoal ainda anterior (1961-1962), como colega na diretoria da União Nacional dos Estudantes (UNE). De inteligência e cultura privilegiadas, Marco Aurélio Garcia envolve-se agora em querelas duvidosas. Chama de mentirosos e golpistas os atuais governantes de Honduras, e afirma que o Brasil não os reconhece. Se é assim, por que mantemos lá a nossa embaixada? Por que não nos retiramos, com o nosso “hóspede”, cessando essa intervenção indireta que acabamos por praticar em outro país, contrariando as tradições da nossa diplomacia? Dos amigos, sempre esperamos o melhor. E me dói vê-lo mergulhado nessa sequência de equívocos: flagrado por uma câmera indiscreta num gesto infeliz de deboche, no episódio do trágico acidente com o avião da Gol em São Paulo, defendendo o retorno do comandante do “mensalão”, rotulado de “aspone” por jornalistas irreverentes, e agora querendo comparar o incomparável: seu próprio asilo como perseguido político da ditadura brasileira e a proteção incondicionada que damos a um aspirante a ditador.

Faço ainda uma última reminiscência, para ajudar na avaliação de nosso “casus belli”. Em 1955, tinha quinze anos, e vi meu pai condenar a atitude do General Henrique Lott, ao colocar a tropa na rua, depor Carlos Luz (Presidente da Câmara no exercício da Presidência da República) e permitir a posse de Nereu Ramos (Presidente do Senado e terceiro na linha de sucessão da Chefia do Executivo), “em defesa da legalidade”. Mas hoje ninguém contesta que o contragolpe de Lott assegurou a posse de Juscelino, já eleito, cujo mandato, com o argumento da falta de maioria absoluta de votos, era contestado por golpistas, Carlos Lacerda à frente, com a provável cumplicidade de Café Filho, o vicepresidente que se licenciou para “tratamento de saúde”, abrindo espaço para a conspiração abortada. Uma ilegalidade formal e temporária que impediu outra maior e definitiva. Sem Lott não teríamos vivido os “anos dourados”, e 1964 teria sido antecipado em nove anos. Alguma semelhança entre nós e Honduras?

Clemente Rosas é consultor de empresas clementerosas@terra.com.br

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