sábado, abril 24, 2010

Da invisibilidade e solidão dos velhotes.

Hugo Caldas

Invisibilidade e solidão. Já aludi aqui mesmo neste espaço, por diversas vezes, às duas constrangedoras e pungentes circunstâncias. Via de regra o velho desaparece da vista das outras pessoas. Em especial dos jovens. Torna-se invisível, transparente. Evapora-se no ar feito bola de sabão. Tal invisibilidade traz de cambulhada junto com o envelhecimento, uma série de outros embaraços. Envelhecer é realmente um saco. Vivo aconselhando às pessoas para, quando a porca da velhice chegar, que entrem em contato com a NASA a fim de uma carona no primeiro foguete e sair de viagem (de ida, preferencialmente) para o outro lado da Lua. Sentir-se desusado, praticamente inútil, é desmoralizante. Péssimo constatar que a cabeça ainda está a 1000 % e o corpo, coitado, a 0,5.

Evidente que em ser idoso, há vantagens. E desvantagens. Vantagem é poder passar à frente do resto da fila nos bancos e ter um caixa exclusivo em supermercados. Outra é não ter que receber aqueles odiosos folhetos vendendo de tudo. De automóveis a apartamentos, promoção de lojas e supermercados. As garotas dos folhetos não conseguem perceber, mercê da nossa invisibilidade, que você está ali parado, esperando o ônibus. O que a meu ver se configura numa estupidez fundamental. Estatísticas mostram que muitas famílias sobrevivem com a aposentadoria dos idosos. De um modo geral, idosos têm dinheiro.

Desvantagens, bom, a mais comum é ser às vezes tratado como débil mental. Isso mesmo. O caso, eu conto! Certa ocasião, a fila do caixa de um determinado banco estava a maior bagunça. Idosos, (eu estava lá) mulheres grávidas e portadores de deficiência todos misturados, falando ao mesmo tempo, ninguém se entendia, até chegar uma senhorinha, ares de Fräulein comandante de campo de concentração, que berrou:

- Vamos organizar essa fila aqui. "Deficientes, idosos, e mulheres grávidas formem uma fila à minha direita, "os normais" passem para o lado de cá. Cruel, não?

Há também uma outra espécie, o oposto. A prestimosa funcionária, carinha de Santa Teresinha de Jesus, que à guisa de mostrar serviço quando solicitada nos caixas eletrônicos, decreta docemente: "coloque o seu cartãozinho aqui, ou, cadê a sua identidadezinha?" "Tenha cuidado com a sua senhazinha."

Mais desvantagens: Descobrir de repente que você é o que se convencionou charmar de "pé na cova”. E pé na cova, meus caros, sofre os maiores vexames nas paradas de ônibus. Se estiver só os motoristas não param ao seu sinal. E quando param, mal esperam você subir no veículo e "arrancam" para lhe desequilibrar. Quando não ameaçam fechar a porta no seu destino se você não apresentar para ele, motorista, e para uma câmera a sua "carteira de velho." É sempre bom lembrar que nós, velhotes não pedimos a gratuidade nos transportes. Nos foi dada. É um direito. Tal gratuidade independe de possuir carteira de velho ou não. O Estatuto do Idoso não especifica. Mas...

Geralmente o velho é mal recebido, mal atendido em lojas e farmácias, por exemplo. As pessoas falam olhando para os lados, o que me causa uma profunda irritação pois se configura uma demonstração de supremo esforço em nos dirigir a palavra. Até por dever de ofício, se você está por trás de um balcão é porque está vendendo, prestando informações, trabalhando. Deveria dar graças à Deus!

Lembro do vexame que via passar a minha mãe, o seu desapontamento, quando porventura se dirigia toda alegrinha aos amigos dos meus filhos e obtinha o calado como resposta. É entretanto bastante comum as pessoas, especialmente os mais chegados, os da família por exemplo, perderem a paciência quando não respondemos de imediato (tudo tem que ser a jato), pouco importa se você está sentindo alguma dor, algum mal-estar, um embaraço qualquer, e terminam por lhe chamar a atenção, um pouco mais firmes, para dizer o mínimo.

Na casa da minha filha, dia desses, chegou uma fulana e não "percebeu" que eu conversava com o meu neto ao sofá. Mesma coisa à mesa no almoço, quando lhe perguntei, a fim de quebrar o gelo, se ela era professora... Um, hum, foi sua lacônica resposta, e fim! Nada mais lhe disse nem lhe perguntei pois a meu ver isso é caso de falta de educação doméstica mesmo.

Aqui mesmo no prédio, para onde me mudei recentemente, fui brindado com o epíteto de "o coroa que fechou o portão". É que não vi o sujeitinho que vinha atrás de mim e inadvertidamente fechei o portão principal. Coisa de neófito em viver na comunidade de um edifício. O tal garoto não tendo a chave telefonou para alguém pedindo que liberassem a entrada pois o "coroa novato" havia fechado. Cuidei de saber o motivo pelo qual ele se referia aos mais velhos como "coroa".

- Por acaso estou mentindo? Foi a sua resposta.

Não existe mais a mesa, ou melhor, à mesa. O comum é comermos sozinhos... sei que todos têm os seus horários, seus compromissos inadiáveis mas, às vezes, estão todos em casa e por força do hábito não se chegam para comermos juntos. Preferem ficar em frente a um computador. Não estou a me queixar de solidão, até que convivo bem com a minha. Mas às vezes dá uma saudade danada dos meus filhos e netos. Sabem o que disse uma vez um certo poeta? "Saudade é a vontade de ver de novo”.

Na história da humanidade são comuns os exemplos de as pessoas se reunirem ao redor de uma mesa para celebrar seja o que for, um casamento, ou uma despedida. Jesus é o caso mais conhecido. Quando percebeu que o fim se aproximava, reuniu a tropa toda para um jantar. Os jantares de final de ano... Se hoje o Homem de Nazaré voltasse, decididamente não haveria mais a Última Ceia.

A mesa sempre foi o símbolo da família, antes que essa loucura toda acontecesse. Me faz falta. Não fui educado para viver nessa correria louca. As pessoas tornaram-se escravas dos seus horários ou de um celular e desaprenderam tudo, ou melhor, não aprenderam nada. Comem depressa e, pecado dos pecados, desses de ir para os quintos dos infernos de cabeça para baixo: falam enquanto comem, apressadas, com a boca cheia. Lastimável.

Ser velho é tolerar tudo o que acima foi dito e amar, acima de tudo os amigos, os filhos, a família, enfim. Sofrer com eles por qualquer acontecimento desagradável, infausto, preocupante. É amar e agradar os netos. É não dizer absolutamente nada ante a mediocridade alheia. É conviver com a vista desaparecendo aos poucos, algumas dores indefinidas, e outros achaques que você prudentemente não demonstra estar sofrendo.

Ser velho enfim, não é privilégio de ninguém. Todos, queiram ou não, se a indesejada das gentes não chegar primeiro, fatalmente terão conquistado o prestígio, a distinção, o status de idoso, para usar a cretina, boçal e grosseira expressão "politicamente correta". E, dizem as estatísticas, que o Brasil está se tornando um país de velhos. Aí, eu quero ver. Constatar o que os jovens de hoje farão quando finalmente descobrirem que também eles estão velhos. O danado é que não mais estarei por estas plagas para conferir. É da ordem natural das coisas.

hucaldas@gmail.com
newbulletinboard.blogspot.com

4 comentários:

Carlos Mello disse...

Hugázio, nada se pode fazer diante da estupidez humana. Muito menos em um país moralmente subdesenvolvido, em que vigem as mesmaS “normas” do tempo colonial, quando aquele que foi furtado, ao invés de ser lamentado, é tido por otário; em que os aristocratas têm direito a tudo, e o resto a nada. Nós nem chegamos ao capitalismo, pois nos Estados Unidos, que são o nosso modelo para tudo, já se compreendeu que os velhos constituem um excelente segmento de mercado – e ai do vendedor idiota que destratar um idoso em uma loja ou banco. Aqui é um país em que claramente o pobre vomita seu furor em cima dos mais pobres e mais indefesos, eis porque os motoristas de ônibus, que têm uma profissão miserável, vingam-se de sua escravidão em cima dos velhinhos, ora não parando nos pontos, ora arrancando para fazê-los cair; em que os guardas municipais atacam com violência os camelôs; em que os funcionários públicos destratam todo mundo impunemente. E em que a Receita Federal toma por símbolo, aliás justo, de sua ferocidade, a figura do leão. Lembro-me daquele Everardo Maciel vociferando que o leão seria impiedoso com o contribuinte em falta (declaração típica do rei dos animais) – ainda que, na maioria dos casos, os faltosos são os pobres que se atrapalharam nas complicadas declarações de “renda”, enquanto os poderosos simplesmente sonegam e fica tudo por isso mesmo. Então, a única solução é fingir de morto e ter uma vida o mais calma possível. Lute por isso. É o que acho. Carlos

Jorge Zaupa disse...

Hugo, só você poderia dizer com tanta maestria o que todos os ''outros velhos'' gostariam de dizer. Parabéns.

Plinio Palhano disse...

É precioso e extraordinário o seu artigo sobre a visão do idoso em relação à nossa cultura. Enquanto nos países desenvolvidos a experiência dos mais velhos é valorizada, aqui, esquecem dessa sabedoria. É lamentável essa prática, mas se tornou comum disseminá-la em todas as circunstâncias da vida brasileira, como você disse muito bem e com arte, que dá gosto de ler e reler.

Ouvi, certa vez, de Paulo Autran, numa entrevista, que os seus livros eram os maiores e melhores companheiros, na sua velhice, com um ar de quem conhecia a vida e a arte na mais profunda experiência. Foi na velhice que o grande bibliófilo José Mindlin doou a sua magnífica coleção para USP, e foi considerado um dos mais importantes homens da cultura nacional. Conheço também um jovem professor com mais de 70 anos que é um dos poucos conhecedores exímios da língua inglesa, que até em aula recita Shakespeare, de memória, para dar exemplos de expressões nas circunstâncias dos versos e da vida, que destrincha as palavras revirando-as por todos os lados, que relembra fatos históricos e cenas de filmes com as suas falas para enriquecimento do assunto em pauta, com a maior naturalidade, porque conhece a arte da representação, e, com a sua cultura, demonstra uma vocação há tempo respeitada e consolidada entre seus pares — o nome dele é Hugo Pereira Caldas, e poucos alunos tem a oportunidade e o privilégio de desfrutar as aulas proferidas por ele...

Hebert disse...

Hugo, com o chegar da idade, de uma hora para outra, percebi que passei a ter poderes extra-sensoriais. Passei a tornar-me invisível. Vi que, ao entrar numa loja, ninguém percebeu a minha presença. Noutro ambiente, dirigi-me a uma jovem e perguntei algo, ela nem olhou pra mim, não me ouviu e acho que nem me viu. No pondo de ônibus, puxei conversa com alguém, fui solene e desumanamente ignorado. Cheguei numa barraca de camelô escolhi o que queria e, na hora do pagamento, chegou um jovem ao qual a dona da barraca dedicou-lhe toda a atenção, ignorando-me e esquecendo-se de que precisava receber pelo que eu havia comprado. Fiquei mostrando-lhe o dinheiro e ela encantada com o recém chegado...
E assim vai. Ninguém tem mais tempo pra perder com velhos.
Mas, "quem não quer ser velho, que morra cedo". Dizem.
Hebert