sábado, julho 31, 2010

Falso Recuerdo 3 - Cynthia Green

Hugo Caldas

Lembro de quando ela me procurou, por indicação de uma amiga, antiga aluna. Era um fim de tarde início de noite. Chegou transbordando disposição, após toda uma curva de estafa do trabalho de nove às cinco. "Quero falar inglês em um mês"! Gostei da sua maneira, corajosa, decidida. Nâo sou de me impressionar e me envolver com alunos. Experiências anteriores não deixaram boas recordações. Houve uma aluna que me mordeu o braço, inconformada com uma nota recebida. Outra, tanto perturbou, olhando e acenando para alguém, estávamos no quinto andar, na calçada. Reclamei, ela saiu estabanada da sala e voltou em minutos com o noivo a tiracolo, um tenente do exército, a querer satisfações. Vivia o país os tempos obscuros de uma ditadura ampla geral e irrestrita.

Como disse, não sou de me encantar. Mas com ela aconteceu, eis tudo! Cíntia era o seu nome, o que de pronto me remeteu à personagem Cynthia Green do romance de Ernest Hemingway, "As Neves do Kilimanjaro". Não tinha ares de mulher fatal. Não era bela, muito menos feia. Sua presença agradava-me. Inteligente. Extravasava-lhe sensualidade nos gestos e nas palavras mais simples. Contei-lhe sobre a personagem e o romance. Daí por diante ela começou a se assinar "Cynthia Green" nas inúmeras mensagens eletrônicas que me enviava. Contratamos um período inicial de três meses de aulas. Ao final do contrato estabelecido comecei a notar que o nosso convívio havia se transformado em um exercicio de "se você vem as quatro eu fico feliz as três". As aulas transcorreram por mais três meses. A vida continuava, ele falava da sua rotina de trabalho (em inglês) e de repente começou a cismar que a sua chefe estava pegando demais no seu pé. Um belo pé, por sinal.

As aulas continuavam sempre em ritmo acelerado. Subitamente se dipôs a uma mudança. Ela decidiu fazer um concurso dentro da sua área, turismo. Fez o tal concurso, passou, fechou o pequeno apartamento no subúrbio onde morava sozinha e voltou para Vera Cruz, sua terra natal. Fazia já um certo tempo que não freqüentava.

Uma bela manhã ei-la de volta. Trazia uma caixa de chocolates e estava metida em um vestido branco, levíssimo, que lhe caía muito bem, curtinho, a revelar suas pernas bem torneadas. Sandálias brancas de tirinhas realçavam os seus pés bonitos. Estava linda. Parecia recém-saida de um banho, cheirava a alfazema e flutuava ao andar com seus passos curtinhos.

Bem ao lado do escritório havia o que se costumava chamar de "winter garden". Um pequeno vão que a governanta, Tia Hipólita, inventou para cuidar e regar algumas plantas. Era um pequeno espaço com uma mesa e algumas cadeiras.....

Cynthia Green... na escola, pela manhã? Após tanto tempo ausente? Apressei o passo para ir ao seu encontro.

Após os beijinhos de praxe nos sentamos e ela contou-me as aventuras. Havia sido promovida no novo cargo e seria transferida para São Paulo. Conversamos, rimos e comemos chocolates. Chegou a hora da despedida.

Nos abraçamos demoradamente. A cabeça ameaçou girar. A sua boca resvalou astuciosa no meu rosto, o sangue me ferveu nas veias, a pele arrepiou, fiquei absolutamente alucinado. Somente algo fora do normal poria fim à situação.

Esse algo seria a Tia Hipólita chegando para regar as suas plantas. Fuzilou aos dois com um olhar de lince, como que dizendo...

– “que assanhamento é esse? Ele é casado, minha filha”.

Estávamos tão próximos, ainda abraçados que eu sentia o seu corpo quente e sua respiração alterada.

- "Deixa pra lá", disse num quase sussurro. "A gente se vê por aí". E se foi, para sempre da minha vida.

Melhor assim. Ela não teve como conhecer a minha escova de dentes.

5 comentários:

LalaSouza disse...

Meu sogro,

Como o senhor escreve bem!
Pena que a estória (ou história, não sei bem se é verdade ou não) foi curta, mas eu seria capaz de ler centenas de páginas de um romance seu (seja ele com E ou com H)! Continuarei espiando o blog como sempre. Um beijo da sua nora. Ass.: Elaynne Souza

Ipojuca Pontes disse...

Caro Hugo

Parabens pela bela cronica. Nem o Braga, Rubem, faria melhor! Ipojuca

Unknown disse...

Como disse minha concunhada.. Sr. Hugo, como o Sr. escreve bem. :D

Lucia Cravo disse...

"Adorei a sua crônica(Falso Recuerdo - Cynthia Green). Essas estórias e outras de astúcia e "trela" já aconteceram com vc várias vezes. É a sua cara. Parece até que eu estava presente e testemunhei tudo." Beijos mil. Lucinha.

Marcia Barcellos disse...

Muito bom ! A vida e seus encantos...
Que delícia de emoção ! Mas, que perigo!!!
Gostaria que esta história continuasse... Abraços. Márcia