quarta-feira, julho 21, 2010

W. J. Solha

Lembro-me de como os artigos de Fernando Monteiro que eu lia na revista Bravo me impressionavam, anos atrás. Não procurei seus livros, porém, porque supunha que encontraria neles meus próprios livros, premonição desagradável alimentada, certamente, pela angústia que o Contraponto, de Huxley, me causou em sua leitura e releituras, pelas páginas – como as minhas – cheias de grandes nomes e de frases em itálico. De repente a presença do pernambucano começou a fechar o cerco. O maestro Eli-Eri Moura, para quem fiz o libreto da ópera Dulcineia e Trancoso, recebe sua visita e é por ele contratado para criar a trilha sonora de uma megaprodução cinematográfica recifense, montada por um pool de igrejas protestantes, e o pintor Alberto Lacet também é posto a serviço do mesmo filme, passando – fascinado - a me bombardear com uma série de textos do novo amigo, por e-mails. Um título – ainda do final dos anos 90 - começa a me martelar a cabeça: Aspades ETs Etc. E é aí que vou ao Sebo Cultural, para assistir ao lançamento de uma coletânea de contos de que participam outros dois amigos – Astier Basílio e Rinaldo de Fernandes – e pergunto, no balcão:

“Vocês têm o Aspades, do Fernando Monteiro?”

A orelha do livro que o narrador português diz que não é romance, mas a ficha catalográfica que sim, é de Marco Lucchesi, poeta e tradutor carioca que se apresentou comigo num dos serões do projeto Tome Poesia, do Antonio Mariano, e que, na ocasião, deixou-me embasbacado pela vastidão de sua cultura – que se derramou de seus poemas e ensaios para o diálogo de largo espectro que manteve comigo. Os títulos de algumas de suas obras – como Sphera e Bizâncio – têm a ver com outros, de Fernando Monteiro, tipo Akhenaton e Vi uma foto de Anna Akhmátova, que, por sua vez, me remetem a filmes de Júlio Bressane, como Cleópatra, São Jerônimo e Dias de Nietzsche em Turim. A arte dos três é de europeus que não cabem no país. Há uma espécie de poética do autor, quando seu personagem Vasco Aspades fala de seu filme Vozes da Água, dotado “de grande verdade pessoal” e “da validade artística que dá a toda narrativa um “tom” evanescente que é, entretanto, firme como as cores dos estuques policromados de alguns túmulos etruscos, com seus afrescos na sombra, seus corcéis e aves de tinta, cães e peixes de prata sumindo em rede pintada de lembranças para os olhos dos mortos”. O texto me pareceu tão maravilhoso quanto difícil, às vezes levado a uma loucura à maneira de Lorca, que me obrigou a reler trechos imensos em voz alta e pausada, para poder sentir chão sob os pés, desorientado na supramencionada “evanescência”, onde – frequentemente, diz Vasco – “é necessário olhar para o que não nos pede para ser visto”. Esta, por exemplo, é uma frase que se tem de ler três vezes para ser assimilada.

Fernando Monteiro traz, de sua outra arte - a de seu personagem - um conhecimento fundo, revelado numa frase lapidar, na qual constata que “O cinema é a arte do rosto”. Claro que ela nos força a lembrar de A Paixão de Joana D´Arc, de Dreyer, obra-prima toda em closes, não só da Maria Falconetti como de todo o elenco, extremamente expressivo, que conta, inclusive, com a bela e poderosa expressão de Antonin Artaud.

Mas como é intensa!

Talvez Fernando Monteiro e seu editor devessem ter invertido o título do livro para ETs ETc Aspades, permitindo ao leitor uma gradativa ascensão ao universo do escritor a partir de outras narrativas bem mais acessíveis, como ETs Etc e Transit, onde – ao contrário do que faz em Aspades – brinca com tudo que sabe de cinema e literatura. Soberbamente escrito, por exemplo, ETs Etc tem momentos nos quais seu narrador me lembra Sam Spade e Philip Marlowe, personagens dos clássicos romances policiais de Dashiel Hammet e Raymond Chandler. Veja isto, por exemplo:

“Lá fora tudo tinha aquele brilho molhado que, nas cidades, faz a gente ter vontade não só de ir para casa, mas de aprender a tocar sax para ficar improvisando coisas em noites chuvosas”. Caramba.

No mais, são histórias... construídas, sem a menor intenção de parecerem reais, mas realmente... scherzi – brincadeiras de altíssima qualidade. Ao dar com um cadáver dentro de um apartamento que encontra com a porta apenas encostada, por exemplo, seu narrador nos confessa: “Nos filmes, as mulheres gritam – e os homens recuam um pouco. Eu não sei se recuei um pouco.” Noutro ponto: “Foi nesse estado de angústia crescente, como se diz nos maus livros, que, numa manhã...”E “Um mês depois, casamos, tudo rápido como nos filmes de produção apressada pela falta de recursos”.

Resumindo: Aspades ETs Etc são, para mim, uma bela, uma enorme surpresa.

W.J. Solha, com essa cara de um sorridente D. Pedro II, é dessas pessoas inacreditáveis. Ator, dramaturgo, escritor, poeta, toca mais ou menos uns 18 instrumentos. Conta a lenda que nos idos de mil novecentos e preto e branco fez um concurso para o Banco do Brasil e foi nomeado para Souza no alto sertão paraibano, belo contraste para o paulista de Sorocaba. Nunca mais voltou à terra natal. Sorte nossa. Que este seu primeiro texto seja o início de uma série para o prazer e deleite dos leitores deste Blog.
A casa é sua, Mestre. HC.

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