segunda-feira, agosto 23, 2010

CONVERSA DE VELHOS

Carlos Mello

No dia 9 de outubro de 1944, o então presidente da Academia Brasileira de Letras, Múcio Leão, dirigia ao escritor Monteiro Lobato uma carta comunicando que seu nome havia sido apresentado para concorrer à vaga deixada pela morte de Alcides Maia. Subscreviam a apresentação os acadêmicos Olegário Mariano, Menotti del Picchia, Viriato Correia, Cassiano Ricardo, Múcio Leão, Oliveira Viana, Barbosa Lima Sobrinho, Manuel Bandeira, Alceu Amoroso Lima e Clementino Fraga. Dois dias depois, Lobato enviava uma carta em que declinava do convite. Eis seu texto, na íntegra:

Sr. Múcio Leão
D. D. Presidente da Academia Brasileira de Letras

Acuso o recebimento da carta de 9 do corrente, na qual me comunica que em documento apresentado à Academia Brasileira, subscrito por dez acadêmicos, foi meu nome indicado para substituição de Alcides Maia; e que, nos termos do Regimento, devo declarar que aceito a indicação e desejo concorrer à vaga.

Esse gesto de dez acadêmicos do mais alto valor intelectual comoveu-me intensamente e a eles me escravizou. Vale-me por aclamação – honra com que jamais sonhei e está acima de qualquer merecimento que por acaso me atribuam. Mas o Regimento impõe a declaração do meu desejo de concorrer à vaga, e isso me embaraça. Já concorri às eleições acadêmicas no bom tempo em que alguma vaidade subsistia dentro de mim. O perpassar dos anos curou-me e hoje só desejo o esquecimento de minha insignificante pessoa. Submeter-me, pois, ao Regimento, seria infidelidade comigo mesmo – duplicidade a que não me atrevo.

De forma nenhuma esta recusa significa desapreço à Academia, pequenino demais que sou para menosprezar tão alta instituição. No ânimo dos dez signatários não paire a menor suspeita de que qualquer motivo subalterno me leva a esse passo. Insisto no ponto para que ninguém veja duplo sentido nas razões do meu gesto. Não é modéstia, pois não sou modesto; não é menosprezo, pois na Academia tenho grandes amigos e nela vejo a fina flor de nossa intelectualidade.

É apenas coerência; lealdade para comigo mesmo e para com os próprios signatários; reconhecimento público de que rebelde nasci e rebelde pretendo morrer. Pouco social que sou, a simples idéia de me ter feito acadêmico por agenda minha me desassossegaria, me perturbaria o doce nirvanismo ledo e cego em que caí e me é o clima favorável à idade.

Do fundo do coração agradeço a generosa iniciativa; e em especial agradeço a Cassiano Ricardo e Menotti o sincero empenho demonstrado em me darem tamanha prova de estima. Faço-me escravo de ambos. E a tudo atendendo, considero-me eleito – mas numa nova situação de academicismo: o acadêmico de fora, sentadinho na porta do Petit Trianon com os olhos reverentes pousados no busto do fundador da casa, e os nomes dos dez signatários gravados indelevelmente em meu imo. Fico-me na soleira do vestíbulo. Mal comportado que sou, reconheço o meu lugar. O bom comportamento acadêmico lá de dentro me dá aflição...

Peço, senhor presidente, que transmita aos dez signatários os protestos de minha mais profunda gratidão e aceite um afetuoso abraço deste seu admirador e amigo
MONTEIRO LOBATO.

Os velhos que hoje lerem esta carta, hão de lembrar do nosso tempo, um tempo em que a sociedade brasileira ainda não havia descido tão baixo, e havia homens capazes de um gesto de nobre coerência como esse. Bem, é verdade que naquela época a Academia também era outra.

Os moços dirão que tudo isso é conversa de velho, que os tempos mudaram, que isso não tem importância etc. e tal. De fato, quem, no Brasil de hoje, nesse formidável carnaval de desonestidade e ausência de caráter, dá pela falta de senso moral? Dignidade, moralidade, escrúpulo, são palavras em desuso, nada mais significam. Cultura, educação, polidez, civilidade, são outros tantos termos sem importância. Este é, como dizia o velho Lalau, “o estado a que chegamos”. Miserere nobis! CM.

Um comentário:

Ipojuca Pontes disse...

Caro Hugo,

Bela transcrição do Carlos Cordeiro da carta de Lobato, que já conhecia.
Ela demonstra um caráter forte, ao tempo em que pontua o carater frivolo da academia. Como diria Itararé, "antes só do que bem acompanhado".
A proposito, mande o seu endereço para que eu lhe envie a minha peça. em forma de conferencia, sobre a vida do Barão. Voce vai se divertir muito.
Abração do Ipojuca