quinta-feira, setembro 16, 2010

DEPOIS ELES SE QUEIXAM

Carlos Mello

“… já que em toda a parte os outros implicam com os que deles se desinteressam...”

(Guimarães Rosa, “A hora e vez de Augusto Matraga”, in Sagarana).

Este título não é meu. Tirei-o de uma crônica do Carlinhos de Oliveira, publicada aí pela década de 1970. O tema é o mesmo abordado por aquela bela figura de gente, bom escritor, bom sujeito, limpo e correto – espécie em risco de extinção neste amável país da bandalheira. Dizia ele que os ricos, a elite, a classe dominante, os políticos, enfim, os que de fato mandam e desmandam na coisa pública, jamais se lembram dos pobres. E depois se queixam quando eles reclamam. Para o massacrado não há nada minimamente decente, escola, hospital, transporte, moradia, saneamento – quando há, é uma coisa lamentável, uma sobra da sobra do que sobrou de outra coisa. Existem as verbas, no papel, mas estas, ao migrarem do orçamento para a prática, somem no ar. Lembro-me de uma escola pública construída em um subúrbio da zona oeste do Rio. Era toda de madeira, material de terceira, teto de amianto, cercada por alambrado. Custou a bagatela de R$ 600 mil. Verba que, em mãos honestas, daria para construir pelo menos seis escolas daquele tipo...

Tenho assistido por todo lado à indignação de alguns representantes da classe média com a preferência do eleitorado pela Dilma. Preferência que é atribuída sempre à “ignorância do povo brasileiro”, à “política populista” do Lula, a uma “demagógica distribuição de bolsa disso, bolsa daquilo”. Quem me conhece, sabe que odeio a hipocrisia. E sabe também que não morro de amores pelo PT. Os sucessivos escândalos e assaltos ao erário e a repetida inapetência do nosso presidente para apurar e coibir essas práticas são imperdoáveis. Mas uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. Também toda hora leio ou escuto referências à sua suposta ignorância. O termo “apedeuta”, cujo significado todos desconheciam até um dia desses, virou doce na boca da oposição. Lula é o ignorante, o biriteiro, o mal-educado, o demagogo...

Pois bem, sei que muita gente vai discordar de mim neste blog e alhures, mas quero dizer que já enchi o saco com essa litania. Que diabo, gente, será que todo mundo esqueceu os governos anteriores? Que tal o Sarney, imortal da ABL, o Collor, tido como poliglota, e o fino intelectual FHC? Quantas vezes essas figuras impolutas se preocuparam em atender a essa questão urgente, à qual o Lula se referia na sua linguagem rude: “encher a barriga do povo?” Algum de vocês que frequentam esse blog sabe o que é passar fome? Tem ideia do que seja a miséria? Provavelmente conhece tudo isso literariamente, de orelhada. Quem já trabalhou em favela, quem viu o que eu vi em escolas públicas no interior, sabe de que estou falando.

No final da década de 1970, tentei com a minha mulher e alguns amigos fazer teatro com grupos de crianças e adolescentes pobres do interior, mais precisamente da região serrana do Rio de Janeiro. Haja coração para ver aquilo! As professorinhas, coitadas, usavam seu minguado salário para trazer alguma vez bolachas, ou simplesmente açúcar, para que as crianças pudessem assistir às aulas com alguma coisa no estômago. Porque tudo que tinham para ingerir em casa era chá – de alguma planta apanhada no quintal, sem mais nada. Essa realidade gerava um misto de tristeza e ódio com o qual foi dificílimo conviver. Nunca tive vocação para guerrilheiro. Mas ali compreendi porque tantos amigos daquela época pegaram em armas e acabaram morrendo na luta. Não dá para suportar tanto descaso pelos despossuídos, tanta insensibilidade, tanta alienação. É difícil contar somente com o juízo final para acertar contas com a canalha que promove essa incomparável infâmia.

O dono desse blog conhece mais mundo do que eu. Passou uns tempos na Venezuela, de onde voltou horrorizado com o tamanho e a miséria das favelas de Caracas. Como estranhar que esses despossuídos, que agora contam com alguma ajuda em termos de alimentos, assistência médica e educação, idolatrem o Chavez? O mesmo poderia dizer dos humildes bolivianos, que apoiam seu presidente índio, Evo Morales. Agora vocês dirão que a política do Lula está errada, que nada de fato melhorou – nem a educação popular, nem os hospitais públicos, nem o saneamento básico. E que a política assistencialista só serve para alienar o povo da solução correta de seus problemas. Como é fácil encher a boca com esse jargão quando se come três vezes ao dia, se tem um lugar decente para morar e se dispõe de um bom meio de transporte.

Não, meus amigos, deixemos um pouco de lado nosso egoísmo e nossa cegueira. Critiquemos o Lula, o PT, a política, os políticos. Mas não nos esqueçamos desse dado fundamental: nunca, na história desse país, os pobres foram lembrados por ninguém. Tudo que o FHC afirma ter feito, ou é mentira ou é meia-verdade. Diz que foi ele a mãe do real (o pai foi sem dúvida o Itamar), que saneou as finanças públicas, que privatizou o que deveria ser privatizado, que isso e que aquilo. Na verdade, o que fez, com sua fria e calculista equipe econômica, foi executar a política imposta pelo FMI. O povo sabe distinguir isso muito bem, porque sente na carne. Antes de terminar, quero dizer que não virei a casaca, que não tenho, nem terei, nenhuma benesse deste ou de outro governo, que sou pobre por opção consciente e tranquila. E que tudo o que aqui afirmo é ditado tão somente pela minha consciência e meu apreço pela verdade. Discordem, se e como quiserem. Mas, pelo amor de Deus, com a mesma lisura e sinceridade com que escrevi este artigo

5 comentários:

Victor Cavagnari Filho disse...

Grande Carlos. Excelente, sob todos os pontos de vista, seu "depois eles se queixam". É de uma clareza e lucidez acachapantes. Chamá-lo de "artiguinho", como você fez, é sem dúvida uma brincadeira ditada pelo pudor dos que tudo sabem mas têm a grandeza de não procurar
se exibir Abraço do
Victor..

jacozinho disse...

charlozinho

continuas na batalha.

segundo um amigo de juventude,

cada vez, somos menos.

um abraço

jacozinho

Unknown disse...

Carlim,

supimpa o teu "artiguinho". Tudo muito certo e certeiro.
Não voto na Dilma nem por decreto, mas o pessoal que a chama de "terrorista" está esquecendo contra quem ela lutou!
Beijo,
Crica

Marco Seixas disse...

Sogro,

Este artigo é sem dúvida muito regado de verdade e emoção de quem conhece um pouco da pobreza e miséria deste povo.
Nunca neguei que votei no Lula na primeira eleição dele. Sim, votei com a esperança de que ele olharia mais para o social e menos para a economia, que diga-se de passagem, sempre configurou entre as 10 maiores do mundo! Acreditei que ele realmente diminuiria a quantidade de impostos, beneficiando os trabalhadores. Trabalhadores também são aqueles assalariados que são roubados em 27,5% do seu merecido e honesto salário pelo governo. Tudo bem que fossemos descontados assim, mas que pudessemos colocar nossos filhos em escolas, hospitais públicos, pois assim eu pagaria com prazer! Ele não fez e nenhum outro fará porque não estão preocupados com a classe média em extinção. É lastimável o que se paga de imposto, até quando a pessoa falece, paga-se impostos vergonhosos!!! Sepultamento R$ 255,00, exumação R$ 250,00. R$ 4.700,00 de funerária, fora imposto causa mortes, ITBI para passar os bens para o nome da viuva 4% do valor do imóvel. Taxas, autenticações, Reconhecimento de firmas, imposto de renda do falecido. Para onde vão os meus 27,5% ???????????????

Germano Romwro disse...

Muito bacana o texto, Carlos. Centrado, justo e bem colocado. Concordo em gênero, número e grau. A única coisa que me preocupa é o futuro da Previdência Social, que já está com um rombo de trilhões de reais. A forma de distribuir renda com doações de bolsas pode parecer, num primeiro momento, uma solução que agrade a todos e ofereça resultados imediatos, porém, daqui a alguns anos, com mais e mais pessoas de aposentando, não sei quem vai resolver o rombo do INSS. Ademais, quem vai ao interior do país se surpreende com a falta de plantio na agricultura, ninguém cria mais nem um bicho no terreiro, Só engravidam mais e mais para ter direito aos benefícios sociais das "bolsas". Será que não haveria outra forma de que as pessoas mais pobres tivessem poder aquisitivo com emprego, com trabalho?...
Um grande abraço para você e Baby.
Germano