quinta-feira, abril 21, 2011

A Páscoa e os bastidores da Paixão



Hugo Caldas





Antigamente, quando eu era menino, a Páscoa era celebrada sem esses salamaleques de hoje, tais como Coelhinhos e Ovos de Chocolate. Tradição? Deletéria invenção da ganância comercial. Os coelhos são da família dos leporídeos, não são ovíparos, ou seja não põem ovos. Muito menos de chocolate. Já imaginou o pobre coelhinho botando um ovo daquele tamanho? Um horror! Mente doentia quem inventou toda essa historiada.

Bacalhau era comida de pobre. O velho Cavalcanti, avô paterno do meu primo Guy Joseph, se dava ao luxo de ficar sentado na calçada de casa com uma barrica de bacalhaus ao lado, distribuindo com os pobres da Paraíba. Hoje, você precisa pedir empréstimo ao banco pra comprar um quilo.

Na Páscoa se celebra a ressurreição do Cristo depois da sua morte por crucificação. As comemorações da Páscoa na realidade se iniciavam na missa do Domingo de Ramos. A minha avó trazia da igreja uma palha de coqueiro que ela mesma transformava cuidadosamente em uma pequena cruz e colocava dentro do santuário em meio aos seus santos prediletos. Ali a pequena cruz iria permanecer durante todo o ano até o póximo Domingo de Ramos quando então, tudo recomeçava.

Durante as celebrações da Semana Santa nas igrejas, belas e intermináveis missas solenes, bem como cerimônias fora do comum como o Lava-Pés. Nas ruas toda a pompa e circunstância da Procissão do Senhor Morto com a Banda de Música tocando a Marcha Fúnebre. Não se usavam sinetas e sim "matracas," instrumento de madeira e argolas de ferro que agitadas produziam um som de estalidos secos e sinistros. As imagens dos santos nos altares estavam sempre cobertas por um pano roxo. Cenas que pareciam imaginadas pelo maluco do Fellini nos seus filmes memoráveis.

Na Rádio Tabajara apenas música clássica, especialmente na Sexta-Feira Santa. Íamos ao cinema e aos circos mambembes. No cine Metrópole a praxe era assistir à "Paixão de Cristo made in Hollywood". As cópias de tão antigas e estragadas que dizia-se, "os soldados romanos não conseguiam identificar Jesus para prendê-lo".

Os circos "Deus-tomara-que-não-chova", eram o máximo, onde o texto estava mais para comédia do que para um drama:

"Este pão que vós vai cumê é o meu corpo. Cumei-o. Este vinho que vós vai bebê é o meu sangue. Bebei-o".

Circos mais tradicionais como O Gran Circo Garcia e o Circo Nerino invariavelmente levantavam as suas lonas na Lagoa, e levavam espetáculos mais elaborados. Porém, sempre havia um senão. No Circo Garcia, durante uma das funções da "Paixão de Cristo", acho que ainda hoje alguém deve lembrar, uma briga feia entre Jesus, que andava enrabichado pela mulher de um dos centuriões, o qual sentindo-se injuriado aproveitou o ensejo para o flagelar de verdade, baixando o sarrafo sem dó nem piedade. O Cristo jogou a cruz ao chão e deu de garra de uma "sete polegadas". Fechou-se o tempo.

A Paixão de Cristo de Nova Jerusalém sempre mexeu comigo. Cheguei a ensaiar um mês (ensaio de mesa) o papel de Caifás. Foi logo após a grande reformulação do espetáculo com a conseqüente redução de uma centena ou mais de papéis para apenas 20 ou 30 personagens fixos. O resto seria figuração. Pimentel que dirigia a Paixão à época se lembrou de mim e isto me envaideceu muito. Tive, no entanto, que pedir para sair em razão de estar envolvido na implementação de uma escola de línguas aqui no Recife. Era muita trabalheira, o que requeria a minha presença. Ainda hoje lastimo ter saído.

Sempre acreditei que teatro é bem melhor para quem faz do que para quem assiste. Existem histórias incríveis acontecidas nos bastidores e coxias dos teatros. Uma delas nas apresentações de Fazenda Nova. O caso eu conto tal como me foi relatado.

Tudo aconteceu no início da década de setenta.

Muito se falava sobre o desempenho de Clênio Wanderley no papel de Judas Iscariotes, o traidor que recebeu um mensalão de trinta moedas de prata. O enforcamento na figueira então, era o seu ponto alto. Clênio, um misto de dentista e ator/diretor era uma pessoa irascível ao dirigir uma peça e um doce de pessoa na convivência diária, apesar de forçar uma cara de Mefistófeles nordestino. Eu mesmo fui dirigido por ele em uma peça de Ariano Suassuna, "O Auto de João da Cruz", uma das minhas últimas incursões pelo teatro da Paraíba.

Clênio adorava quando descobria na platéia amigos ou conhecidos seus porque aí então ele se esmerava na interpretação. Certa noite, um dos ganchos do colete onde se prendia a corda para o enforcamento partiu-se, o laço saiu do prumo e o movimento brusco apertava-lhe cada vez mais o pescoço. Qualquer tentativa de se livrar e tomar o fôlego, a corda estreitava. Ele estrebuchava. O pessoal da técnica bem como o resto do elenco a tudo assistia, alguém até comentou: "Deve ter muita gente conhecida de Clênio assistindo porque ele hoje está se botando". Foi quando se deram conta do que realmente estava acontecendo. Ouviu-se um grito: "corre que o homem está morrendo." Rapidamente apagaram as luzes e correram a acudir o Judas.

O pobre do Clênio quase morre enforcado mesmo.

11 comentários:

Celso Japiassu disse...

Beleza, Hugão.
O nome daquele velho circo era Nerino ou Merino? Ou estou confundindo com uma marcha de rum?

Celso Japiassu disse...

Danou-se. Onde se lê marcha, leia-se marca.

Mary Caldas disse...

Minha memória da celebração da Páscoa é bem pernambucana mas em tudo se parece com a da Paraiba. Lembro bem das músicas clássicas na Rádio Clube, da proibição de comer carne só peixe durante toda a semana santa. Porém a mais viva lembrança que me vem agora é de meu pai fazendo jejum cristão lendo textos evangélicos.
Muito bom, Hugão.

W.J. Solha disse...

Maravilha, Hugo. Texto muitíssimo bem feito e engraçado.

W. J. Solha

Jorge Zaupa disse...

Quisera que essa rapaziada de hoje lesse textos como esses seus seu Hugo. Não o fazem por preguiça mental e também porque não é qualquer um que que escreve com a sua leveza. Sobre a Páscoa: assim como o Natal, virou consumismo.
Esqueceram o significado. Pena!

Fábia disse...

Seus textos têm caráter e humor próprio. Adoro ler sobre suas memórias.
Boa Páscoa!
Fabia

Girley Brazileiro disse...

Hugo,
Maravilhoso! Tenho razões para ficar feliz ao ler essas suas memórias.
Estou pensando que e juntarmos nossas memorias, publicariamosum belo livro.
Parabéns!
Girley

Lucia Rosas disse...

Hugo, como sempre, um excelente texto. Muito bem escrito. Fiel aos costumes da época, me lembro muito bem. Era exatamente assim. E excelente crítica aos "oportunismos comerciais" de hoje. Mas o que mais gostei foi do senso de humor, que você sempre teve e aprimorou. Coisa de Paraibano bom, da gema. Quase morri de rir. Gargalhei. Continue escrevendo coisas assim. Rir é muito bom, faz um bem enorme à saúde.
Lucia Rosas/Cravo

Maria Olindina disse...

Olá, Hugo!
Gostei do texto. Sempre brilhando hein?
Pois é: Na Páscoa temos a agenda cheia, tanto na Literatura como no Cinema.A Literatura está repleta de títulos sobre os significados da data sagrada e no cinema a produção pascal infantil HOP - Rebelde sem Páscoa, que conta a saga de um coelho atropelado por um homem preguiçoso e, impedido de pular porque quebrou a perna, pede que ele aprenda o seu trabalho para salvar a Páscoa.Quanto aos comes e bebes, eu adoro o bacalhau à Gomes de Sá e um vinhozinho.
O que acha?
E pra vc/FELIZ PÁSCOA: tempo de renascer.
Já foi o tempo em que eu ia à Procissão.É muito emocionante.

Guy Joseph disse...

Hugão, meu querido primo: fui um dos primeiros fãns, de carteirinha, dos seus textos e exprimi a minha satisfação, já nos primeiros momentos de seu blog. Ontem mesmo, comentava com Regina von Söhsten, a beleza e o sabor dos seus textos, que fez do seu Unlimited, o sucesso que é hoje.
Sôbre a Semana Santa, lembro das restrições a todo tipo de manifestações de alegria. A culpa era tanta, que certa vez, como frequentadores de certa boate, no Rio, eu e Cordeiro, encontramos o espetáculo das striper's suspenso, sob a alegação de respeito a data... bravíssimo!
Guy Joseph

Zeneudo Luna disse...

Leitura muito boa e oportuna....Obg amigo Hugo Caldas.....
Luna