quinta-feira, junho 23, 2011

Estudar era uma obsessão

Francisco Nunes

NO QUARTEL HAVIA UMA ESCOLA REGIMENTAL destinada a soldados de baixa escolaridade. O comandante escolhia um policial com razoável instrução para ministrar as aulas. Os soldados recebiam lições de conhecimentos gerais e deveriam ser capazes de ler, escrever e efetuar as quatro operações.

Cabo Cleuto Leal, meu colega na Casa das Ordens, cursava o terceiro ano científico e foi selecionado para a função de professor, segundo critérios estabelecidos.

Enquanto isso, eu trabalhava de dia e, à noite, freqüentava aulas no Educandário Néri, em João Pessoa, para prestar exames do art. 91. O estudo era, por essa época, 1941, a minha maior preocupação.

A Polícia estava me propiciando a realização de um desejo que me acompanhava desde criança: estudar. E eu me agarrava àquela oportunidade com muita dedicação. Precisava recuperar o tempo perdido e complementava o estudo formal com a leitura de todos os livros que caíam em minhas mãos.

Os livros me fascinavam. Desde menino me interessava por eles, mesmo antes de entender o que realmente significavam. Lembro que, certa vez, em Jatobá, quando brincava na casa do meu amigo Francisco, ele retirou de uma velha escrivaninha um livro muito grosso que disse ser um dicionário. Juntos, começamos a folheá-lo e eu fiquei impressionado com as pequenas ilustrações que via em cada página. Aquele primeiro encontro com figuras desconhecidas, acompanhadas de muitas palavras difíceis, colocadas em ordem alfabética, deixou-me a idéia de que aquele livro encerrava todas as palavras e todas as explicações de um mundo que eu começava a descortinar. Era uma visão delirante e tanto me impressionou que, já em João Pessoa, reconheci o dicionário na vitrine de uma livraria e o adquiri como se descobrisse um grande tesouro. E, assim, o Dicionário Prático Ilustrado de Jaime de Sèguier passou a ocupar lugar de destaque entre os poucos livros que eu possuía. Até hoje ele me acompanha como fiel representante desse meu período de descobertas e como símbolo do meu interesse pelos diversos saberes.

No Educandário Néri também funcionava um curso de inglês, ministrado por um professor recém-chegado dos Estados Unidos. O inglês era a minha grande fascinação. Desde Patos, já me encantava a sonoridade do idioma ao ouvir o pastor Briol conversando com o Dr. Aurélio naquela língua. Agora, uma nova oportunidade se apresentava e eu podia ousar um pouco mais: estudar inglês.

Naqueles dias, só se falava na guerra que se alastrava na Europa. No Nordeste, Natal e Recife foram as cidades escolhidas como bases de apoio para a movimentação de soldados e armas para a zona conflagrada. João Pessoa, por ficar a meio caminho dessas bases, recebia a visita de muitos americanos fazendo com que a língua inglesa influísse no nosso cotidiano. A comunicação entre brasileiros e americanos seria facilitada por quem dominasse o idioma deles.

Eu me sentia um privilegiado quando, eventualmente, era solicitado a colaborar nos contatos com os soldados que vinham a João Pessoa se divertir. Essa experiência foi profundamente enriquecedora e eu comecei a me orgulhar de mim mesmo. Sabia que estava no caminho certo.

Por problemas pessoais, o Cabo Cleuto Leal pediu dispensa da função de professor da Escola Regimental e eu, considerado um elemento estudioso, fui indicado para substituí-lo. Continuei na Casa das Ordens, operando o mimeógrafo e, à noite, entre 19 e 21 horas, ministrava as aulas. Recebia, por isso, uma gratificação de 30 mil réis.

Fui obrigado a deixar de estudar à noite. Mesmo assim, reconheço que essa passagem pela Escola Regimental foi um marco importante, pois me senti testado e motivado para continuar acreditando que, através do estudo, encontraria a realização pessoal que eu buscava.

Paralelamente, eu me preparava para a prova ao posto de sargento, mas, embora tivesse me esforçado muito, não fui aprovado. Eu não estava suficientemente preparado e as vagas eram poucas. Senti-me frustrado, é claro, mas procurei entender a derrota como uma advertência. Continuei estudando e me preparando para um novo desafio, que não tardaria a chegar.

Alguns meses depois, fiz outra prova, desta vez para monitor de Educação Física. Fui aprovado. Vibrei muito com essa conquista. Além da prova escrita, foram requisitos básicos: ter boa saúde e bom físico. E isso eu exibia nos exercícios de rotina, na praça de esporte do quartel, ou quando participava dos treinos e dos jogos de vôlei e basquete. Apesar de franzino, não fazia feio.

Vi no curso de monitor de Educação Física a oportunidade para esquecer a frustração que senti pela reprovação anterior. Comecei o curso bastante entusiasmado. Sua duração seria de seis meses, porém, quando estava no final do quarto mês de atividades, fui acometido de um mal súbito durante um exercício físico. Depois dos exames, o Dr. Edrísio Vilar, médico militar, determinou minha internação. Eu havia adquirido uma doença venérea, como eram chamadas as doenças sexualmente transmissíveis. Naquela época não havia divulgação do uso de preservativos, nem muitas informações sobre relações sexuais. O assunto ainda era tabu. Homens e mulheres sabiam do perigo constante, mas corriam o risco. Depois do fato consumado, vinham as conseqüências desastrosas e só restava submeterem-se a tratamentos longos à base de penicilina. Fiquei 30 dias internado no Hospital Santa Isabel.

Quando voltei ao quartel já havia sido desligado do curso. Mais uma frustração, e essa doeu mais que a outra.

Retornei à rotina da Casa das Ordens e da Escola Regimental, bastante contrariado.

Estava decepcionado comigo mesmo. Pensei em desistir da vida militar e me preparar para a vida civil, mas eu relutava por sentir grande orgulho em pertencer à Força Policial da Paraíba. Assim, cheguei à conclusão que essas dificuldades apenas me incitavam e não poderiam me fazer recuar.

Apesar de ter encontrado na caserna um bom ambiente e ter feito bons amigos, eu me sentia só, sem família. Minha mãe deixou um grande vazio, só agora percebia. Senti sua falta em muitos momentos. Então, tomei coragem e decidi procurar minhas tias. Fui ao Ponto Cem Réis e logo localizei um senhor que correspondia às características físicas do Santino, cunhado de minha mãe. Dirigi-me a ele e perguntei:

— Senhor Santino?

— Sim, eu mesmo, o que deseja?

— Eu sou Chiquinho, sobrinho de sua esposa, Dega.

— Filho de Severina?

Percebi que ele se surpreendeu com a minha aparição. Fiquei aliviado, com a sua expressão de satisfação. Imediatamente ele manifestou interesse em que eu os visitasse, acrescentando:

— Dega vai gostar muito de conhecê-lo! E Severina, como está?

Constatei, nesse momento, que, de fato, minha mãe havia se afastado de suas irmãs. Sua mágoa devia ter sido grande, por isso aquele silêncio ressentido e enigmático a respeito delas, na última vez em que nos encontramos.

Fingi desconhecer quaisquer desavenças familiares e respondi:

— Ela faleceu em Recife, onde trabalhava. Morreu sozinha, sem família.

O homem ficou perplexo, lamentando, ao mesmo tempo em que me apresentava condolências. Rapidamente escreveu em um pedaço de papel o seu endereço e insistiu para que eu os visitasse, o que fiz algumas vezes.



( "Minha Vida, Meu Tudo" )

Um comentário:

Marcia Barcellos disse...

Bonita recordação que o autor do texto " Estudar era uma obsessão " nos apresenta.
É muito agradável lembrar fatos de nossa existência. Quando reviramos o nosso " baú de memórias "a emoção fala mais alto.
Há um confronto entre a satisfação, alegria e também tristeza. Ficamos mais nostálgicos.
Parabéns para ele! Aproveitou as oportunidades que a vida lhe ofereceu. Abraços, Márcia