terça-feira, julho 26, 2011

Lembrando pedaços da infância no sertão...



Francisco Nunes da Costa






1930. NAQUELE TEMPO, falava-se muito em “Revolução”, esse era o assunto em todas as rodas de conversa. Havia inquietação geral e as pessoas quando voltavam da cidade transmitiam para os que moravam na roça tudo o que ouviram.

Não obstante ser tão criança ainda, eu ouvia com atenção os comentários e gravei bem os nomes de Getúlio Vargas e Julio Prestes, ambos muito falados. Diziam que eram homens importantes e que por suas brigas políticas poderiam desencadear uma revolução. Diziam, ainda, que muito longe de nós estava se formando um foco de rebeldia e que esse movimento poderia chegar à Paraíba do Norte onde o Presidente do Estado (governador), João Pessoa, da corrente Liberal, fazia oposição à corrente Perrepista (PRP — Partido Republicano Paulista), encabeçada por Julio Prestes. Mas essa história de partidos e apoio político eu só fui entender tempos depois.

À medida que o tempo passava, aumentava nas pessoas o medo de que a revolução, caso chegasse à Paraíba, produzisse verdadeiras misérias, como assassinatos, queima de residências e outras atrocidades.

Em Patos, o assunto era esse. As notícias circulavam de boca em boca. Meu avô ia à cidade, para conversar e colher informações sobre os movimentos e, quando voltava, comentava e recomendava para que não disséssemos nada, porque era muito perigoso.

— Na capital, as coisas já começaram a ferver — dizia.

João Pessoa contrariava interesses de grupos poderosos ligados à cultura do algodão e da cana de açúcar. Porém, conseguiu o apoio de comerciantes, mulheres, estudantes e funcionários públicos, principalmente da capital.

Não tardou muito para que a revolução explodisse no sertão, principalmente em Teixeira e Princesa, dominadas por poderosos coronéis, que lançaram mão de grupos de cangaceiros bem armados para enfrentar a polícia.

Eu sentia a preocupação das pessoas e, ainda que não entendesse o que aquilo poderia significar, percebia que minhas tias estavam intranqüilas com relação ao meu pai. Temiam que, sendo ele militar, poderia, a qualquer momento, integrar a Força que a Paraíba estaria enviando para combater grupos rebeldes naquelas cidades.

Meu pai escreveu uma carta, na qual confirmava as nossas suspeitas: sua Unidade seguiria, a qualquer momento, para Princesa ou Teixeira, e ele iria a São Pedro, rapidamente, para deixar a família aos cuidados de meu avô. Todos choraram ao ler a carta, devido ao tom alarmante e preocupante de suas palavras.

O clima estava tenso. Recordo que numa segunda-feira, eu e meu avô, no final da tarde, retornávamos da cidade, caminhando calmamente pela estrada. Ele carregando sobre o ombro um pesado saco com as compras e eu seguindo à sua frente, chutando pedaços de qualquer coisa para me divertir. Subitamente, percebemos um barulho estranho à nossa retaguarda, na estrada, aproximando-se. Meu avô pediu-me para apressar o passo. Olhei para trás e disse-lhe entre assustado e impressionado:

— Pai! São muitos soldados! E tem também caminhões!

Estávamos próximo do caminho que levava para a nossa casa quando a tropa emparelhou conosco. Meu avô disse em voz baixa:

— É a Revolução, não olhe Chiquinho!

Eu queria muito olhar. Aquele movimento diferente me deixava curioso. Consegui ver que nos caminhões havia armas grandes, e me imaginei em cima de um deles, junto com os soldados que pareciam estar muito alegres.

O medo tomou conta do meu avô e me tirou daquele momento de fantasia. Fui contagiado pelo mesmo sentimento de pavor que o invadia. Lembro que quase nem podíamos caminhar. Eu tropeçava em suas pernas, enquanto ele, firme, cabeça ereta, acelerava os passos e me empurrava para a frente, forçando a não me deter naquelas imagens. Ele sabia que eram as forças leais ao governo que seguiam para Princesa e Teixeira com a finalidade de sufocar os grupos rebeldes. Mesmo assim, ao ver tantos soldados em barulhenta algazarra, alguns parecendo embriagados, meu avô ficou muito nervoso e repetiu:

— Ande depressa! Não olhe para eles!

E os soldados, ao passarem por nós, pilheriavam e insultavam meu avô: “Ei, velho!”, como se pretendessem provocar uma reação que justificasse a prática de algum ato perverso.

Aos poucos, o pesadelo foi se distanciando. Ficamos para trás, caminhando e nos refazendo daquele clima de terror por que acabávamos de passar.

Em casa, aliviados do medo e livres das ameaças, ainda ouvíamos, ao longe, o alarido dos soldados. Eu não entendia o porquê de tanta algazarra e tanta euforia, pois diziam que muitos soldados morrem na luta e nunca mais voltam para suas casas.

Pairava sobre toda a região uma atmosfera de pavor, exigindo que cada um se precavesse contra possíveis desajustes emocionais de algum daqueles soldados que, no afã de estar indo para o campo de batalha, poderia praticar uma ação criminosa em nome da causa que ele estava defendendo. Bá e Inocência, a todo instante, arriscavam uma olhadela nas proximidades da casa, preocupadas com os soldados.

Devido ao clima aterrorizante, as portas das casas eram fechadas ao cair da noite, quando todos se recolhiam, como naquela segunda-feira, por se temer que alguns soldados se desviassem da estrada e as invadissem. Diziam que eles, por onde passavam, deixavam marcas de grande vandalismo: casas destruídas ou saqueadas, mulheres agredidas ou violentadas.

Nesse clima ameaçador, meu pai era permanentemente lembrado, e eu via minhas tias em súplicas fervorosas a Deus para que o protegesse.

Soubemos que ele havia partido, e só.

Em uma carta, antes de partir, ele próprio disse que não poderia enviar notícias e sabia que sua mulher e filhas estavam protegidas em nossa casa.

Dias depois, soubemos que meu pai também passara por ali integrando um novo contingente policial, sob o comando do major João Costa, da Força Policial da Paraíba.

Na cidade corriam boatos de que havia muitos mortos em batalha. E imaginávamos que meu pai poderia ser um daqueles. A dúvida sobre se ele estaria morto ou ferido e a incerteza de como e quando seria a sua volta nos deixava profundamente angustiados.

Nesse cenário, ganhei um broche com o retrato de Juarez Távora. Orgulhoso, o coloquei no peito e minhas tias foram logo me prevenindo:

— Se te perguntarem qual é o teu partido, deves responder: Partido Liberal.

Quinzenalmente eu acompanhava meu avô à cidade onde ele comparecia ao Quartel da Força Policial e recebia parte dos vencimentos de meu pai, que seriam utilizados nas despesas de sua família, enquanto ela estivesse conosco.

Um dia, espalhou-se a notícia apavorante:

— Mataram João Pessoa!

O assunto correu como um rastilho de pólvora. Imediatamente, por toda parte, havia pessoas curiosas por mais notícias. Espalhados pela cidade, viam-se piquetes e soldados com seus fuzis ensarilhados sob o olhar dos civis. A revolta do povo era grande já que João Pessoa era muito estimado. No país, a revolução parcialmente reprimida, de repente tomou impulso, tendo como bandeira o sacrifício do presidente paraibano, que culminou com os acontecimentos políticos de outubro de 1930.

Finalmente, tempos depois, as escaramuças foram contidas e meu pai escreveu comunicando que estava se apresentando, são e salvo, à sede da Força, na capital.

Os movimentos revolucionários haviam cessado, no Estado. Meu pai pôde voltar para casa. Lembro a grande alegria que tomou conta de nós, naquele dia. Ele chegou a São Pedro inesperadamente. Eu estava brincando com as meninas em cima do lajedo e ouvi quando minhas tias gritaram:

— Graças a Deus você voltou!

Corremos para casa. As meninas agarraram-se a ele solicitando carinho. Mariinha, sua esposa, quase nem podia dar vazão à sua saudade. As tias, entre risos e choros, tentavam abraçá-lo, emocionadas. Eu consegui furar aquela barreira feminina e também o abracei. Meu avô contemplava de perto a cena e, feliz, agradecia a Deus por tudo que assistia. Esse momento de reencontro nunca se apagou de minha mente. Eu o via como resultado das muitas orações que fui obrigado a fazer, reunido com minhas tias para que nada acontecesse a meu pai nas lutas de que ele participava em Princesa Isabel.

Depois disso, meu pai, ainda traumatizado pelas experiências vividas no campo de batalha, nos contou os horrores por que passara com seus companheiros; os momentos de privação e de desânimo; as vezes que tiveram que se alimentar de milho cru e beber água suja; as noites mal dormidas protegendo-se dos cangaceiros e das muriçocas. Eu ficava calado, boquiaberto, imaginando meu pai como um grande herói, já que nenhuma daquelas balas inimigas o atingiu.

Meu pai foi promovido ao posto de sargento e passou a integrar o destacamento de Patos. Alugou a mesma casa na Rua Dezoito do Forte, onde viveu com a minha mãe. E, nessa casa, passou a residir com Mariinha e as filhas.

Um comentário:

Márcia Barcellos da Cunha disse...

Sr. Francisco Nunes da Costa,

Bonito e emocionante o seu relato.

Que tempos difíceis foram aqueles...

Só quem viveu tal situação é que sabe

o que foi tudo aquilo. Obrigada Márcia.