segunda-feira, agosto 22, 2011

NÓS, BICHOS DO MATO.


Algumas verdades sobre essa tal qualidade de vida que a gente pensa que vai encontrar quando resolve morar na roça.

(Despachado de um sítio remoto no Vale do Paraíba)






A
belhas, marimbondos, besouros e todo tipo de insetos zumbidores e mordedores adoram condicionador de cabelo. São fissurados por cremes hidratantes. Têm tara por bronzeadores. Não importa se os produtos são florais ou tutifruti (seus preferidos, logicamente) ou à base de leite de cabra; todos, sem exceção, atraem uma nuvem de bichinhos enlouquecedores em vôos rasantes que muitas vezes terminam de forma camicase no alvo mais próximo – que tanto pode ser o decote da gente quanto o ouvido. Alguns existem especializados em adentrar as narinas da criatura desavisada que se pôs ao sol, crente de que ia apenas pegar uma corzinha, enquanto secava o cabelo ao vento.

Joaninhas multicoloridas como nos desenhos animados, pequenos seres tão úteis à lavoura, esquecem-se de que sua dieta deve consistir exclusivamente de pulgões malfeitores e atiram-se em bandos sobre a cabeça molhada da alienígena, deixando bastante claro que são as donas do pedaço. Para não provocar um desequilíbrio ecológico, a gente acaba concordando com a mensagem sub-reptícia: cada um deve ficar no seu lugar. E o seu lugar é o banheiro, usando o secador elétrico e gastando kilowatts preciosos, exatamente como faria se ainda estivesse na desumana cidade grande, em vez de ser uma privilegiada que largou tudo e foi morar no mato.

Viver junto à natureza não é a moleza que a gente imagina quando faz as malas e pega a estrada para se instalar – finalmente! – no que foi, durante anos e anos, um mero refúgio dos fins de semana. Sábados, domingos e feriadões, por mais numerosos que tenham sido, não preparam ninguém para o que vem por aí. E hordas de insetos hostis atraídos pelo aroma de cosméticos naturais só não são o menor dos incômodos porque existe um tal de maruim, mosquitinho quase microscópico capaz de produzir no seu corpo – livre, leve e solto, exposto aos elementos – inchaços monumentais dolorosíssimos que nenhuma plantinha milagrosa consegue aliviar.

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Claro, o mundo alado também nos presenteia com compensações encantadoras. Já fiquei um tempão esquecida do que estava escrevendo no computador porque uma borboleta fascinada pela tecla g nela se instalou esfregando as antenas de satisfação. Já persegui (no bom sentido) beija-flores frenéticos que entram em casa e não conseguem encontrar a saída por conta própria. Já me dispus a defender com a própria vida, qual ecologista tresloucada, ninhos de coleirinhas contra gaviões mal-intencionados. Já salvei a vida dos mais variados tipos de pássaros bisbilhoteiros que desconhecem a traiçoeira ilusão dos vidros e se precipitam contra as vidraças. Já aprendi a distinguir pelo rufar de asas quando o intruso é mera andorinha ou exige que se chame um homem para expulsá-lo, porque nem morta chego perto de um morcego (e não adianta os entendidos garantirem que ele tem mais medo da gente do que nós dele – no meu caso, isso não é verdade).

Em menos de seis meses de vida no campo descobri que essa aberração da natureza (um rato que voa!) é, disparado, um dos animais menos ameaçados de extinção. Certo dia, num final de tarde preguiçoso, observando a cumeeira da casa, parei de contar quando o vigésimo segundo morcego deixou o aconchego do forro e voou para a mata em frente. Pelos meus cálculos, devemos hospedar uma colônia de proporções suficientes para polinizar uma área do tamanho de dez campos de futebol. Considerando-se tal superpopulação, até que suas andanças noturnas no telhado são discretíssimas; mal comparando, o barulho parece o de bolinhas de gude rolando por cima da nossa cabeça – chato, mas não especialmente enlouquecedor.

Fora isso e o encantador pio das corujas, poucos sons quebram o silêncio das noites estreladas. É bem verdade que, se é época de lua cheia você deve se preparar para ouvir – lá por volta da meia-noite e até as duas da manhã, mais ou menos – o canto estridente e sem um pingo de imaginação de certa ave noturna cuja identidade permanece um mistério, já que uma dúzia de nativos consultados a respeito forneceu uma dúzia de nomes impronunciáveis e descrições diversas. Sei com toda certeza que se trata de bicho deserdado pela sorte: nasceu pássaro e tudo que consegue emitir são dois gritos agudos seguidos, sem um pingo de talento melódico. Mostra-se, portanto, enganosa a teoria que nós, gente urbana, acalentamos sobre a sabedoria cabocla e o esplendor da vida animal.


Igualmente ilusória é a imagem ideal de deitar numa rede olhando aquele ceuzão e ouvindo os grilos. Quanto à rede e ao ceuzão, perfeito. Acontece, porém, que o som dos grilos é incompatível com o ouvido humano. Foi suficiente que um – apenas um – se instalasse no ponto mais recôndito das telhas da sala gritando feito um alucinado para que essa cruel realidade me atingisse em cheio. O bicho simplesmente não pára de ... sei lá que nome se dá para sua barulheira infernal, mas definitivamente não é um mero cri-cri. Cigarras, pelo menos, diz a lenda, cantam até estourar. Grilos não cantam. Não estouram. Não nos dão um segundo de paz. Pior: não há habilidade ou esperteza citadinas capazes de localizá-los quando resolvem se esconder para mais comodamente destruir nossa sanidade mental.

Traiçoeiros, não se manifestam durante o dia. Só vão dar o ar da nossa desgraça quando é tarde demais para conseguir ajuda. E não recuam diante de qualquer adversidade. Por mais impiedosamente caçados que tenham sido numa noite, lá estarão, no mesmíssimo lugar (sempre, fora do alcance das nossas mãos ou mesmo de uma escada Magirus) nas noites seguintes. Felizmente, a experiência mostrou que no final do verão vão berrar noutra freguesia. O que nos deixa todo tempo do mundo para enfrentar aquelas formiguinhas que parecem se reproduzir por geração espontânea. Surgem do nada, às dezenas, em cima da mesa e em especial na pia da cozinha e no fogão – não importa quão limpos e desinfetados estejam. Você olha para o campo de batalha e não há sinal da inimiga; pisca, e lá estão elas, indomáveis, tão diabolicamente sorrateiras e ardilosas que se instalam no seu bem mais precioso: as panelas – hermeticamente fechadas, é bom esclarecer – com o que você imaginou seria o seu almoço.

Casca de pepino no batente da janela afasta as desgraçadas”, apiedou-se o caseiro. Ôba!, temos pepino na horta. Funciona. O grande pepino é que a temporada do pepino acaba e a da formiga continua. Agora, a solução são galhos da preciosa alfavaca cultivada com todo carinho para fins mais nobres. Vão-se as alfavacas e ficam as formigas. Intrépidas, resolutas, resistentes, enquanto lhes dá na telha. “A senhora está reclamando, mas pelo menos essa formiga a gente vê”, alerta o agora cheio de autoridade caseiro. “Pior é a quenquém, que vem por baixo da terra e a gente só nota quando o estrago está feito.” Palavras proféticas. O estrago das quenquéns fez meu coração sangrar menos de uma semana depois.

Meus gerânios europeus (aqueles que caem em cascatas dos balcões de todas as casas de campo alemãs), meu gerânios europeus, escolhidos a dedo por resistirem às geadas, que por aqui são brabas; meus gerânios europeus, plantados com arte numa seqüência ton-sur-ton; meus gerânios europeus estavam reduzidos a um picadinho verde bem mastigado e mal digerido. Sendo desgraça pouca bobagem, botões de rosa natimortos pendiam melancolicamente dos galhos, hecatombe esta de exclusiva responsabilidade de um tipo de abelha que o pessoal local chama de aripuá e não tenho intimidade com você para contar de que eu chamo. Mal refeita desta iniquidade, percebi que as folhas dos lírios japoneses, vigorosas na véspera, antecipando uma florada exuberante, pareciam renda filé. Que, como renda, é linda, mas como folha de lírio japonês prenuncia desastre irreparável. Culpa de quem? Do apetite de milhões de lagartas pretas listradas de amarelo. Lindas também, mas monstruosas quando caem de amores pelos lírios japoneses da gente.


(No próximo capítulo você vai ver
do que são capazes galinhas,
lontras e plácidas vaquinhas.)

Do site - http://antesqueeumeesqueca.weebly.com/vida-no-mato.html.
da jornalista Márcia Lobo.





Um comentário:

Márcia Barcellos da Cunha disse...

Olá primo,

Muito bem lembrado. Tudo isto acontece mesmo, para tristeza de muitos de nós.É a natureza com seus códigos...Grande abraço, Márcia