domingo, novembro 20, 2011

Meu Tipo Inesquecível - Ney Quadros


Hugo Caldas




Escandaloso, espalhafatoso, tonitruante. Eis os adjetivos mais oportunos colhidos no Aurélio para definir e qualificar devidamente o meu amigo Ney Quadros. Figura singularíssima, ótimo sujeito, amigo fiel, incapaz de uma maldade sequer. Coração maior do mundo. Tinha, no entanto um senão. Bebia muito e sempre. E quando bebia tornava-se inconveniente. O conheci ainda em João Pessoa para onde ele ia com certa regularidade. Era primo de Celso e Moacir Japiassu que ainda não haviam pegado o rumo do sul maravilha.

Por ter que assumir o meu primeiro emprego no Recife, e considerando o isolamento a que seria relegado na cidade desconhecida, logo Ney se ofereceu para ser o meu cicerone, abrindo umas tantas e quantas portas para mim. Mal poderia supor as venturas e travessuras que me esperavam. Egresso do mundo intelectual que incluía uma passagem significativa pelo Teatro do Estudante da Paraíba achava eu, na minha santa ingenuidade, que as coisas na "vizinha capital do sul" seriam uma mera continuação do que tinha vivido até então em João Pessoa.

Ledo engano. Achei por bem aceitar o oferecimento de Ney e logo iniciamos o nosso périplo por lugares interessantíssimos. Para começar me ambientei no "Chateau d'If", prédio antigo na Rua do Rangel que ostentava umas ameias à semelhança da prisão onde ficaram Edmond Dantès e o Abade Faria, personagens de "O Conde de Monte-Cristo", de Alexandre Dumas. Era um atelier de pintura. Conheci e passei a frequentar o Bar Savoy - "trezentos desejos presos, trinta mil sonhos frustados" - onde bebíamos um chope honesto na companhia da melhor intelectualidade do Recife.

Logo aconteceu uma exposição de artistas plásticos da Paraíba no Mercado da Ribeira em Olinda. Claro que enchemos a cara, eu e Ney, em um bar perto do evento e terminamos a noitada no chão da sala da casa de Adão Pinheiro, no Carmo em Olinda. Acordo às 10 da manhã amargando uma terrível ressaca e o que vejo? Ney fazendo gargarejo com uma garrafa de Ron Montilla. "Pra rebater", disse.

O Recife à época era uma cidade risonha e franca. E não fedia.

Nos primeiros tempos eu e Ney saíamos à farra quase que noite sim e outra também. Freqüentávamos lugares como O Flutuante, restaurante construído em uma balsa que ficava ancorada quase em frente à Livraria Ramiro Costa, de saudosa memória: ainda hoje lá estão as escadarias que usávamos para descer até o convés. O Maxim's na Praia do Pina com suas peixadas memoráveis e muita cerveja. A Torre de Londres de cardápio respeitável, em pleno Parque Treze de Maio. Festa da Mocidade aonde íamos paquerar as vedetinhas... Era um custo segurar o Ney que a toda hora ameaçava subir ao palco e agarrar uma delas. Teatro Marrocos de propriedade do grande comediante Barreto Junior, já nosso velho conhecido desde as suas célebres temporadas de João Pessoa.

Na zona, o Bar Chanteclair. Bar do Grego onde íamos quebrar pratos muito antes de Zorba/Quinn nos encantar nas telas do Cine São Luís. Texas Bar, Silver Star, todos lugares agradabilíssimos do baixo meretrício. Mister se faz ressaltar que em todos os bares acima relacionados, o Ney sempre bêbado e sempre inconveniente dava um vexame. Nunca vi uma admoestação sequer. Todos os proprietários e garções o conheciam e gostavam dele. Passavam-lhe a mão pela cabeça.

O lado cultural era geralmente preenchido aos sábados pela manhã no Cinema de Arte de Casa Amarela, (Coliseu) de onde saíamos ao meio-dia já prontos para novas aventuras.

Apesar das nossas sortidas serem geralmente à noite lembro de Ney no Recife Velho, em plena luz do dia, envergando imaculado macacão branco, empunhando um caderno de desenho, lápis, régua, crayons multicoloridos, qual um Toulouse Lautrec dos Trópicos a registrar prédios antigos e tipos exóticos. Uma figura o Ney Quadros.

Por causa do meu horário de trabalho terminamos indo cada um para o seu lado. À essas alturas eu já estava bem mais enfronhado nos mistérios da Veneza Americana.

Cismou de ir para o Rio de Janeiro. Consta que no Rio, em Copacabana para ser mais exato, um grupo de recifenses saiu a passeio pela orla, Silvio Pinangé, Montez Magno e mais outros, e quem puxava o cordão? Ney, de berimbau em punho tocando e cantando aboios. Certa tarde, ele chega de surpresa na casa de Moacir Japiassu. Bebeu tudo o que encontrou na despensa e, quando enxugou a última garrafa, bebeu o azeite.

Reencontrei-o mais tarde já casado com Marta Teodósio, irmã de Mano ambos pertencentes a uma família respeitadíssima, da mais alta nomenclatura do PCB. No auge da "redentora" toda a família foi presa e Ney entrou de gaiato na história. Foi de cambulhada para a cadeia. Deve ter levado uns catiripapos na prisão, mas terminou por conquistar a amizade dos carcereiros. Assim era o Ney Quadros. Eu mesmo ouvi uma gravação preparada em fita K-7 no cativeiro e que por artes do capeta ele fez escamotear para que chegasse até nós, seus amigos. Ao som das suas risadas espalhafatosas ele nos apresentava...

- "Com vocês o Sgt. Gonçalves meu carcereiro, diz alguma coisa aí, sargento. O sgt. Gonçalves muito a contragosto diz":

- "Olha aqui, gente boa! Mexam com os pauzinhos para tirar esse camarada daqui que eu já não agüento mais!" Somente o Ney Quadros conseguiria tal façanha.

Quando saiu, foi respirar outros ares em São Paulo, creio que trabalhou na USP, como físico nuclear, imaginem o perigo.

De volta ao Recife perdi-o totalmente de vista, quando certa madrugada - duas da manhã - o telefone toca na minha casa. Tomei o maior susto. Era Ney às gargalhadas, embriagadíssimo: me convidava para comer um tatu assado com ele. Pespeguei-lhe o maior esculacho. Onde já se viu telefonar para a casa dos outros às 2 da manhã com semelhante convocação?! Tentei voltar aos braços de Morfeu, mas debalde todo o meu esforço. Terminei por me arrepender de ter sido tão rude com o meu amigo. Ficou o eco das suas palavras:

- “Mas é um tatu, meu caro, coisa rara...”.

E assim se passaram quase 10 anos. Ney parecia ter sumido no oco do mundo. Uma bela tarde quente de dezembro um táxi risca a minha calçada. Quem seria? Quem poderia ser... ? Ele mesmo, o Ney com toda a pompa e circunstância, que por artes do cão descobrira o meu endereço. Ao mesmo tempo em que despachava o táxi aos gritos ia entrando embriagadíssimo com uma garrafa de conhaque debaixo do sovaco. Grande abraço apertado, de quebrar as costelas, gritos e risadas escandalosas. Os vizinhos vieram temerosos saber do que se tratava aquela algazarra na casa do professor.

Aboletou-se no terraço, passou o resto da tarde a beber até que cismou de entrar na piscina. De roupa e tudo. Ameaçou e o fez, evidentemente. Não deu para agüentar mais. Com extrema dificuldade conseguimos colocar aquele homenzarrão no carro. Dirigi para as bandas da Cidade Universitária onde ele sob protestos, dizia estar morando em companhia de sua filha. Pediu, que eu o deixasse em uma pequena praça das redondezas. Foi a última vez que nos vimos - já faz uma pá de tempo.

Perdi-o de vista e de notícias, até que, não muito tempo atrás, soube por amiga comum que ele estaria hospitalizado em fase terminal - Alzheimer. Gelei. Imediatamente liguei para o hospital indicado, mas a resposta foi negativa. Liguei para outro. Nada. E mais outro e mais outro e a resposta era sempre: "Não temos nenhum paciente com esse nome!”

Pergunto: onde está o Ney Quadros? Por onde anda a sua filha? Sei que ele tinha um outro filho. Onde estão? Quem internou o Ney e em qual hospital?

A única certeza é que o meu amigo Ney Quadros está em lugar incerto e não sabido. Provavelmente em algum leito de hospital. Só. Apenas ele e a sua singularíssima pessoa.

9 comentários:

W.J. Solha disse...

Magistral retrato, Hugo. Ri a valer com as presepadas de seu amigo e com as suas, ao virtuosisticamente, descrevê-las. Solha

Arael Costa disse...

Caro amigo Hugo
Dada a olhada e impressionado com a recordação de Ney Quadros, nome e personagem que não me estranho e com o artigo/análise da presença das igrejas neopentecostais entre nós.
Este, tomei a liberdade de passar a um padre, mais jovem que nós e, se ele fizer algum comentário, estará nas suas mãos.
Um abraço e bom domingo, Arael

Fernando Lira disse...

Hugo: Ronaldo Minervino, de saudosa memória, e, meu companheiro no Exército, quando servimos juntos no 15 RI, sempre falava em Ney Quadros, quando já quarentões, tomávamos cervejas no restaurante do Paraiba Pálace Hotel. O caso não requer risos ou choros, mas, ter notícias de Ney Quadros e enviar ao seu blog. Grande abraço. Fernando Lira-Praia do Meio-Natal-RN.

Aline Alexandrino disse...

Huguíssimo
Tenho preguiça de preencher todas aquelas coisas pra fazer um comentário (meus heróis atuais são Macunaíma e Ascenso Ferreira). Vai aqui mesmo. O texto sobre Ney está supimpa! Mas, mais que tudo é um retrato fiel daquele maluco. Como voce sabe, a minha secretária é vizinha da moça que cuidou dele durante um bom tempo. E ela disse algo que retrata bem a figura. Ele não lembra mais de nada, o Alz fez um estrago considerável. Mas quando ele tem raiva desfia todos os palavrões que conhecia tão bem. Não esqueceu de nenhum. Não é a cara dele?!... Aline

Ipojuca Pontes disse...

Caro Hugo,


Vibrei com o artigo de Ney Quadros, um tipo tambem inesquecivel devido a feiura, os olhos esbugalhados, fixos e atentos, o nariz proeminente, o andar pesado e incerto. Era mais amigo de Paulo, por quem tomou-se de paixão. em 1959, levando-o para a casa dos pais, em Recife. Parece-me que o chefe da familia era um coronel do exercito reformado. Tinha tambem uma irmã feia, mas muito inquieta, chamada Helga, Helga Quadros, cuja mãe, paraibana, era da familia Falcão, irmã do cronista Aga, tio de Celso Japiassu, bom poeta. Era uma familia generosa e originalissima.
Curiosamente, quando em João Pessoa, o Ney ficava na casa de Hiltinho Bertrand, cronista social, longe dos familiares. De fato, quando bebia, quase sempre, era uma esponja incontrolavel. Para espantar a burguesia local - que coisa, meu Deus! - ele e outra figura esquisita, Orlei Mesquita,
iam para esquina da Casa Cruz, no Ponto de Cem Reis, de paletó e pés descalços. Achavam-se superiores a patuleia ignara. Bons tempos!

PS - Chantecler. Silver Star e Texas Bar eram pontos obrigatorios quando morei em Recife, em 1960. Voce saberia me dizer o nome das ruas em que ficavam, no Recife portuario? É informação importante para mim e peço desculpas antecipadas pela "exploração".
Abração do Ipojuca

Silvio Romero disse...

O Blog do Hugão está, como sempre, supimpa. Quanto ao nosso amigo Ney,
não tenho o que acrescentar ao que você já disse. Até o tonitruante já
foi dito. A minha relação com Ney foi no tempo dos pintores aqui em
Olinda. Era uma grande farra. Viviamos, nós os não pintores, de
atelier em atelier em busca de um bom papo e de outras aventuras. E aí
dava-se o inevitável. Encontrávamos Ney e a bagaceira estava
instaurada. Mas, de seu paradeiro também não tenho a menor idéia. Eu
nem sabia que êle e Mano eram cunhados.
Quem sabe o Silvio Batusanschi, que viveu por lá, tenha mais
informações. Silvio

Márcia Barcellos da Cunha disse...

Olá Hugo,
Que presença marcante e irreverente!Não dá para esquecer uma criatura assim...Com certeza, fez muitos amigos...Abraços. Márcia

Unknown disse...

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gelota disse...

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