domingo, dezembro 25, 2011

OS FRAGMENTOS DA MEMÓRIA DE MARLUCE SUASSUNA BARRETO MAIA





W. J. Solha




Quando abri a porta pra molhar as plantas da frente de minha casa, vi um belo carro anos 50, 60 parado do outro lado da rua, ante a Caixa de Assistência da OAB. Cruzei a Paraná, desfrutei as formas do automóvel antigo de todos os ângulos, e um senhor – que se apresentou como Dr. Paulo Roberto Maia – presidente do Clube do Carro Antigo da Paraíba – aproximou-se perguntando-me: “Gosta?”

- Caramba, é uma beleza!

Falamos de nosso amigo comum, Mirabeau Dias, com seu cinema particular e sua coleção que inclui um Ford 29 e um Citroën clássico, etc. e tal. Aí despedimo-nos, e vai daí que um dia toca a campainha de minha casa, reabro a porta e lá está o médico num belo MP Lafer conversível dos anos 70, vermelho, como o da foto:

Pensei que viera me mostrar mais aquela joia sua, mas ele era apenas portador de outra, também às voltas com o passado: o livro Fragmentos da Memória, Editora Manufatura, 2009, escrito pela mãe do doutor, a senhora Marluce Suassuna Barreto Maia. A dedicatória, com caligrafia surpreendentemente jovem para alguém com 91 anos, dizia “W. J. Solha, aí vai a ousadia desta sua amiga Marluce”.

Ocupado com o libreto dA Ópera de Ágaba, que estou fazendo para o maestro Carlos Anísio e que me levou à pesquisa sobre o conceito de moralidade na Paraíba da primeira metade do século passado, interrompi-o pra ler o livro inesperado. Claro: uma coisa é a História, outra, a ficção envolvendo uma época, e uma terceira óptica é a das memórias de quem esteve , no exato lugar remoto do passado, e que nos fala dele sem intermediários.

Dona Marluce revela-se uma mulher que respeita as mulheres de seu tempo, reverencia seus homens, tem paixão enorme pelas suas famílias, terras, pelas crianças geradas por tais grandes clãs e, principalmente, pela vida, pelo tempo que viveu, que não viveu Jessier Quirino em seu magistral Vou-me embora pro passado. Ela conta tudo com extrema simplicidade, graça, desenvoltura. Às vezes revê tudo com tanta clareza, que nos diz “Vejam”, ao iniciar uma narrativa, como a desta cena sertaneja do final dos anos 20, começo dos 30:

Mandaram buscar com bastante antecedência o vestido da noiva, encomendado a uma exímia costureira de Açu, Rio Grande do Norte, ( para o casamento dos parentes Chateaubriand e Adálida). Por ser de acabamento requintado, de finos bordados com fios de seda e contas, não estava pronto, e o portador ficou esperando. Enquanto isso, a casa da fazenda Volta foi ficando cheia de convidados, a festa rolando. Matavam-se galinhas, perus e bois. Não faltava entretenimento, leite quentinho, tirado e bebido no pé da vaca, depois o café farto, passeio no campo, inclusive banho de açude. Não tinha maiô nem sunga, os homens iam e, ao voltarem, iam as mulheres. Os sanfoneiros se revezando e alguns pares dançando. À noite era baile para todos. (...) No terceiro dia, realizou-se o casamento, a noiva usou o vestido de uma tia. À tarde, o portador chegou. Muitos convidados tiveram oportunidade de ver e lamentar a noiva não ter tido o prazer de exibir aquela peça com tamanha beleza.


O que vem a seguir me lembra de quando eu trabalhava no filme Fogo Morto - no papel do Tenente Maurício (que persegue Antonio Silvino) – e a cenógrafa Rachel Sisson me disse que as casas dos ricos mudaram muito, do tempo de Zé Lins pra cá (1976), mas as dos pobres, não. Veja, depois de ler o trecho abaixo - de Marluce Suassuna Barreto Maia - a foto de Sebastião Salgado sobre o mesmo tema, mostrando que o velho Nordeste pobre realmente não mudou muito:

Sendo eu filha única, mamãe mandava o recado (a uma das moradores da fazenda) pelo portador do leite: “Diga a sua mãe que mande uma das meninas brincar com Marluce”. Não tardava chegava uma. No dia seguinte, era convocada a de outra casa, e, assim, eu tinha sempre uma companheira para brincar, fazendo boneca de sabugo de milho, balançando nas redinhas improvisadas de qualquer retalho de pano. Faziam-se também currais de pau-a-pique com cipós quebradinhos em igual tamanho, que se enchia de vacas e bezerros de pequenos ossos de carneiro e boi representando o rebanho.

O passado que Fragmentos da Memória resgata, vem de longe. Veja o quadro representando um engenho colonial... e o registro no livro da senhora Marluce:


O engenho, puxado a bois, proporcionava-nos um belo passeio, montados na almanjarra desocupada. Era o nosso carrossel rústico e prazeroso.

Novos tempos, novos temas. O de que revoluções, por exemplo, sempre tiveram excessos. Como os de 1917, na Rússia, revelados pelo Doutor Jivago, romance de Boris Pasternak, filme de David Lean, e pelos romances de Alexander Soljenitzen, a exemplo do Arquipélago de Gulag. 30, na Paraíba, não foi diferente. O próprio José Américo de Almeida, em O Ano do Nego, fala das depredações e incêndios na capital, ainda Parahyba. Daí que Marluce Suassuna Barreto Maia – pertencente a famílias do lado vencido, enumere – com genuína dor – o assassinato do ex-governador João Suassuna no Rio, o massacre de João Dantas, no Recife...


...e – natural em sua narrativa sempre centrada em famílias, mulheres, amores e crianças de sua classe - isto:

Imaginem que, aqui na capital, Rita de Cássia Vilar Suassuna, esposa de João Suassuna, mais os filhos e diversas famílias, tiveram que se recolher no quartel do 15 RI, em Cruz das Armas, a fim de não serem molestados. Observem o contraste. Esta senhora, que morou quatro anos no Palácio da Redenção, onde nasceram dois filhos, Betacœle e Ariano, ser recolhida ao quartel da mesma cidade.


Nossa memorialista viveu tempos intensos. Meu libreto para A Ópera de Ágaba pretende recontar a tragédia ocorrida sete anos antes, quando o Monsenhor João Batista Milanez conseguiu do governo Solon de Lucena, que se traçasse uma linha imaginária na Praça Felizardo Leite, hoje João Pessoa, dividindo a parte em que poderiam transitar as meninas da Escola Normal, que ele dirigia (no prédio do atual Palácio da Justiça), e aquela que ficaria para os rapazes do Lyceu (atual Faculdade de Direito), para evitar que se encontrassem. Vai daí que Sady Castor da Nóbrega – do Lyceu - não aceitou a proibição de ver Ágaba Gonçalves de Medeiros – da Escola Normal -, e foi morto com um tiro, pelo guarda conhecido como 33, com o que a moça, alguns dias depois, se matou.

Veja – por este trecho dos Fragmentos da Memória - como o procedimento do Monsenhor era useiro e vezeiro na época, visto que a Igreja tinha sempre o apoio das famílias:

Interna no Colégio das Damas, de Campina, fui chamada ao Parlatório, onde um conterrâneo tirou uma carta do bolso, entregou-a ligeiro para mim, dizendo: “É pra você, guarde logo”. Coloquei-a dentro da blusa e só a li quando, de volta, entrei no banheiro. Era uma verdadeira declaração de amor, que li e reli diversas vezes. Precisava rasgá-la. Era do primo, meu namorado. Poucos dias depois, disseram isso a papai, lá em Catolé. Qual não foi minha surpresa ao receber uma carta sua e outra para a superiora, comunicando o ocorrido e acrescentando: “Pode aplicar a pena convencionada pelo colégio. Sei que é caso de expulsão, lamento muito, mas minha filha cometeu a falta”. Essas cartas, já censuradas de acordo com o regulamento, foram-me entregues pela própria superiora. Na minha, quase não falava no assunto, dizia apenas: “O mais, para nossa vista”. Nessa hora, fui submetida a um grande interrogatório, no qual nada neguei. (..) Com oito dias, recebi papai no parlatório com a presença da superiora, onde foi abordado o assunto. Depois de tudo explicado, prevaleceu a sinceridade minha e a de papai. Eu seria perdoada com uma condição: escrever ao rapaz, acabando o namoro. Mesmo assim, papai facultou: se eu quisesse interromper os estudos, me levaria, faria o casamento e ponto final na nossa convivência. A minha resposta foi negativa. Longe de mim o afastamento da pessoa que era o sentido da minha vida. E queria terminar o curso.


Anos depois, a vigilância era a mesma. Cena de 1941:


Ao chegar à noite, lá em casa, eu o recebia (a Erasmo, meu futuro marido) levando-o até a sala onde nos sentávamos. Descobri depois que as meninas ficavam na sala vizinha, onde tinha o petisqueiro (guarda-louça de vidro) refletindo nossa imagem.


O pai de D. Marluce, entretanto, faleceu logo depois do impasse no colégio:


Naquele tempo usava-se luto. Não levei mais a farda, e sim vestidos pretos que usei o ano todo e, para encerrar, recebi o diploma em particular, no gabinete, com a presença da diretoria do educandário.

Um tio, político influente, prometeu-lhe trabalho como professora no grupo escolar.


De volta de uma das viagens à capital, falou-me sobre estar encontrando dificuldade por seu ser Suassuna e essa ser família adversária do interventor da época, Argemiro de Figueiredo. Mesmo assim, dias depois, foi publicada no Diário Oficial, a seguinte nota: “Contratando a professora não diplomada Marluce Barreto (suprimiram o Suassuna) para a cadeira noturna do Grupo Escolar Antonio Gomes”.


Ela não aceitou.
Em meu romance Relato de Prócula ponho personagens meus numa cena que vi numa madrugada dos anos 60, lá em Pombal: Frei Damião seguido às pressas por uma multidão de sertanejos, muitos com coroas de espinhos e pedras na cabeça. No filme Eu sou o servo, de Eliézer Rolim, (de 2001) fiz uma pontinha em que era o pai do padre Ibiapina, numa visão que ele tinha quando passava na caatinga, carregado numa cama por vários negros e acompanhado de muitas beatas.
Marluce Suassuna Barreto Maia conta o que viveu em 1939:

A primeira missão de Frei Damião em Catolé, em 1939, ela (sua tia Salviana, bem corcundinha ) lamentou não poder assistir. Motivo: as estradas intransitáveis para carro. Mamãe disse logo: “Não será problema, titia, deixe comigo”, e ela disse: “Mas como, minha filha?” Mamãe convocou seis moradores fortes. Levaram titia numa rede amarrada em um pau, deixando as extremidades livres para apoiar nos ombros, o que faziam se revezando. Era muito usado no sertão como transporte de doentes
.

Lembro-me de que a primeira sessão de cinema a que assisti – com uns quatro, cinco anos de idade - foi num telão ao lado da Igreja de São Judas Tadeu, num bairro de Sorocaba, lá em São Paulo. E de que meu pai, ao assistir comigo uma cena de beijo em novela, já nos anos oitenta, cobriu os olhos com a mão. Pois bem: Fragmentos de Memória junta essas duas coisas, aqui no sertão:

D. Corina Lobo, uma senhora octogenária, perguntou: “Cadê o cinema?” Era a primeira vez que entrava em uma sala de cinema. Explicaram que, quando salão ficasse cheio, a luz se apagaria e o filme iria começar. Ela respondeu meio aborrecida: “Oxente, tá bom, basta: se eu num tô vendo no claro, que dirá no escuro.” Mas sentou-se e esperou. Com pouco tempo, aconteceu. O filme contava uma história de amor e não podia faltar o mocinho abraçando e beijando a mocinha. Foi o suficiente para D. Corina cobrir o rosto com as mão: “Virge Maria, meu Deus , que escândelo!”


A graça, aliás, está por toda parte,
em Fragmentos da Memória:

Eu estava na casa de madrinha Benigna, com as primas Mariinha e Julieta. Esta, mais ou menos da minha idade, identificava-se muito comigo. O estafeta entregou o telegrama (de Erasmo, meu futuro marido, que acabara de partir) e ela foi logo dizendo: “Não precisa nem abrir. Vou dizer como é: Ótima viagem e muitas saudades”. Era tal e qual. Foi uma risada geral.

Essa Julieta é uma figura:

Notei olhares e cumprimentos risonhos, dela, dirigidos a um dos balconistas. Ao sairmos, perguntei: “Julieta, você está flertando com Tião?” Ela riu e confirmou: “A gente tem a roupa da diária e a roupa de festa, não é? Pois assim devem ser os namorados. Esse é da diária”.


Há muita coisa que marca essa época. Lembro-me de que em 62 passei no concurso do Banco do Brasil e fui entusiasticamente cumprimentado por todo mundo, como se tivesse ganho na loteria. Porque eu era pobre e os salários do BB, bastante altos. Jamais me esquecerei do colega José Bezerra Filho – também de origem humilde - ao entrar pela primeira vez na agência do BB, em Pombal: veio com as mãos juntas no alto, sacudindo-as eufórico, tal e qual alguém que tivesse botado o adversário na lona. Imagine-se isso vinte anos antes. O BB era sorte grande até para as elites. Dona Marluce conta:

Chegou um telegrama comunicando a aprovação ( de meu namorado, Erasmo) do Banco do Brasil. Calculem com que satisfação ele chegou lá em casa a nos comunicar! Era como se conduzisse a bandeira de uma vitória.


Isso num meio em que as comemorações eram assim:


Tudo regado com muita cerveja que era resfriada em meias molhadas, penduradas nas janelas.


E lá se foi o Erasmo trabalhar bem distante! A cada ausência sem notícias, dele, a irritação da namorada era grande, “o que não era normal em mim”.

“Não escreveu? (ela dizia à foto dele no porta-retrato) Vai ficar de castigo de frente pra parede até a carta chegar!”


Encerro esta leitura com uma cena hilária, outra... tocante.


Vejam o embarque: na estação ferroviária, aquela aglomeração de gente, Adalberto foi logo acomodar Nereuda no vagão com o carinho que lhe é natural. A bagagem não era pequena, deixou na plataforma, sob os cuidados de alguém, para ir levando aos poucos, e assim procedeu. Entrava e saia, entrava e saia, mas, antes de terminar, o trem deu partida, ele ainda se esforçou para alcançá-lo, mas não foi possível. Alguns passageiros viram o ocorrido, mas Nereuda não, embevecida com o filhinho. Passados alguns minutos da partida, o cidadão que viajava na cadeira paralela, olhando para o neném, disse: “Mas esse bichim já parece com o homem que perdeu o trem!”


Setembro de 47. D. Marluce tem uma queda feia, ao viajar a cavalo.

Quando mamãe se aproximou, eu já estava sentada, sem falar, com, uma enorme hemorragia nasal e um golpe na cabeça.


O desespero foi geral. A moça entrou em coma.

Nessa aglomeração, entra uma velhinha, freguesa das esmolas de mamãe. Ao se encontrar, abraçaram-se chorando. Mamãe ofereceu a cadeira e depois de um tempo, deu-lhe a esmola e uma xícara de leite. Sinhá Maria Antonia tomou o leite e depois, com as mãos postas, ergueu os olhos como procurando algo do além e disse: Dona Mariquinha, tenha fé em deus que sua filha não morre. E acrescentou: Meu Deus, se há de tirar essa mãe de família, tão moça, boa de criar os filhinhos dela, tire a mim, que já vivo de esmola e não tenho mais serventia. Pra que eu sirvo neste mundo, meu Deus?- encerrou muito contrita e chorando. Passou mais uns minutos e foi embora. Às cinco da tarde, chegou uma pessoa conversando com mamãe, sem saber o assunto da manhã, e comentou que a velhinha chegara na casa da filha com que morava, não quis almoçar, tomou um chá e, às 16 horas, essa foi lhe oferecer uma papa e , ao abrir a rede, ela estava morta. Espantada, mamãe disse em voz alta: Marluce não morre mais. Nesse mesmo dia saí do coma.


O mais importante, parece-me, em livros como esse, da editora Manufatura, (que tem como logomarca a silhueta de dinossauro de empresa muito, muito mais antiga )...

... é a vida que nos vem repassada intacta, sem os apelos a exceções, como costumam fazer as obras de ficção, nem a centralização nos homens e mulheres de destaque, como costuma fazer a História. A Paraíba ganhou com a edição de Fragmentos da Memória. Bom. Eu, pelo, menos, ganhei.

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