quarta-feira, março 28, 2012

Chico, ainda - O Menino


Autorretrato inédito de Chico Anysio onde o humorista relembra um menino tímido, calado, subnutrido e de grande olhos

O GLOBO

RIO - Num Natal, já faz alguns anos, Chico Anysio escreveu um texto e pensou em usá-lo na TV Globo. Acabou não fazendo isso. Trata-se de um texto autobiográfico, em que o humorista — que morreu na sexta-feira passada, aos 80 anos — relembra o menino que um dia foi.

Apesar do tom melancólico e triste, há uma passagem bem-humorada, quando ele diz que o mundo pode ser um inferno ou uma badalação, dependendo se ele é visto pelo escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues ou pelo novelista Gilberto Braga.

O texto mostra o Chico Anysio já adulto procurando pelo Chico Anysio ainda criança, um menino de 11 anos, comum, tímido, com grandes olhos, "desproporcionais ao tamanho do rosto".

Nessa busca, ele relembra um amor não correspondido, os brinquedos de infância, as roupas de época, os sentimentos de então. Um autorretrato revelador e inédito de um grande gênio do humor nacional.

Leia abaixo o texto:

"Vou fazer um apelo. É o caso de um menino desaparecido.

Ele tem 11 anos, mas parece menos; pesa 30 quilos, mas parece menos; é brasileiro, mas parece menos.

É um menino normal, ou seja: subnutrido, desses milhares de meninos que não pediram pra nascer; ao contrário: nasceram pra pedir.

Calado demais pra sua idade, sofrido demais pra sua idade, com idade demais pra sua idade. É, como a maioria, um desses meninos de 11 anos que ainda não tiveram infância.

Parece ser menor carente, mas, se é, não sabe disso. Nunca esteve na Febem, portanto, não teve tempo de aprender a ser criança-problema. Anda descalço por amor à bola.

Suas roupas são de segunda mão, seus livros são de segunda mão e tem a desconfiança de que a sua própria história alguém já viveu antes.

Do amor não correspondido pela professora, descobriu que viver dói. Viveu cada verso de "Romeu e Julieta", sem nunca ter lido a história.

Foi Dom Quixote sem precisar de Cervantes e sabe, por intuição, que o mundo pode ser um inferno ou uma badalação, dependendo se ele é visto pelo Nelson Rodrigues ou pelo Gilberto Braga.

De seu, tinha uma árvore, um estilingue zero quilômetro e um pássaro preto que cantava no dedo e dormia em seu quarto.

Tímido até a ousadia, seus silêncios grita$nos cantos da casa e seus prantos eram goteiras no telhado de sua alma.

Trajava, na ocasião em que desapareceu, uns olhos pretos muito assustados e eu não digo isso pra ser original: é que a primeira coisa que chama a atenção no menino são os grandes olhos, desproporcionais ao tamanho do rosto.

Mas usava calças curtas de caroá, suspensórios de elástico, camisa branca e um estranho boné que, embora seguro pelas orelhas, teimava em tombar pro nariz.

Foi visto pela última vez com uma pipa na mão, mas é de todo improvável que a pipa o tenha empinado. Se bem que, sonhador de jeito que ele é, não duvido nada.

Sequestrado, não foi, porque é um menino que nasceu sem resgate.

Como vocês veem, é um menino comum, desses que desaparecem às dezenas todas os dias.

Mas se alguém souber de alguma notícia, me procure, por favor, porque... ou eu encontro de novo esse menino que um dia eu fui, ou eu não sei o que vai ser de mim."

3 comentários:

Márcia Barcellos da Cunha disse...

Hugo,
Com certeza, Chico Anysio foi um ser humano especial.
Belíssimo e emocionante texto! Abraço. Márcia

Jorge Zaupa disse...

Hugo, sem medo de errar, eu morri um bom bocado com a morte do Chico. Aliás, todos que tem sensibilidade morreram também um bocadinho.
Quanto ao texto: dizer o quê com tanta beleza. E essa sem baton ou
pó de arroz.

Ana Maria Arnaud disse...

Fabuloso esse texto do Chico. Acho encantador esse jeito leve e despreocupado de escrever.