sexta-feira, outubro 26, 2012

VERGONHA QUE NÃO TENHO DE SER NORDESTINA


Sheila Raposo – Jornalista

Cultivado entre os cascalhos do chão seco e as cercas de aveloz que se perdem no horizonte, cresceu, forte e robusto, o meu orgulho de  pertencer a esse pedaço de terra chamado Nordeste.

Sou nordestina. Nasci e me criei no coração do Cariri paraibano,  correndo de boi brabo, brincando com boneca de pano, comendo goiaba do  pé e despertando com o primeiro canto do galo para, ainda com os olhos  tapados de remela, desabar pro curral e esperar pacientemente, o  vaqueiro encher o meu copo de leite, morninho e espumante, direto das tetas da vaca para o meu bucho.

 Sou nordestina. Falo oxente, vôte e danou-se. Vige, credo, Jesus-Maria  e José! Proseio com minha língua ligeira, que engole silabas e atropela a ortoépia das palavras. O meu falar é o mais fiel retrato.

 Os amigos acham até engraçado e dizem sempre que eu “saí do mato, mas  o mato não saiu de mim”. Não saiu mesmo! E olhe: acho que não vai sair  é nunca!  Sou nordestina. Lambo os beiços quando me deparo com uma mesa farta,  atarracada de comida. Pirão, arroz-de-festa, galinha de capoeira,  feijão de arranca com toucinho, buchada, carne de sol... E mais uma  ruma de comida boa, daquela que, quando a gente termina de engolir, o  suor já está pingando pelos quatro cantos. E depois ainda me sirvo de um bom pedaço de rapadura ou uma cumbuca de doce de mamão, que é pra  adoçar a língua. E no outro dia, de manhãzinha, me esbaldo na  coalhada, no cuscuz, na tapioca, no queijo de coalho, no bolo de  mandioca, na tigela de umbuzada, na orêa de pau com café torrado em  casa! Sou nordestina. Choro quando escuto a voz de Luiz Gonzaga ecoar no  teatro de minhas memórias. De suas músicas guardo as mais belas  recordações. As paisagens, os bichos, os personagens, a fé e a  indignação com que ele costurava as suas cantigas e que também são  minhas. Também estavam (e estão) presentes em todos os meus momentos, pois foi em sua obra que se firmou a minha identidade cultural.

Sou nordestina. Me emociono quando assisto a uma procissão e observo  aqueles rostos sofridos, curtidos de sol do meu povo. Tudo é belo neste ritual. A ladainha, o cheiro de incenso. Os pés descalços, o véu sobre a cabeça, o terço entre os dedos. O som dos sinos repicando na torre da igreja. A grandeza de uma fé que não se abala.

 Sou nordestina. Gosto de me lascar numa farra boa, ao som do xote ou do baião. Sacolejo e me pergunto: pra quê mais instrumento nesse grupo  além da sanfona, do triangulo e da  zabumba? No máximo, um pandeiro ou  uma rabeca. Mas dançar ao som desse trio é bom demais. E fico nesse rela-bucho até o dia amanhecer, sem ver o tempo passar e tampouco  sentir os quartos se arriando, as canelas se tremelicando, o espinhaço se quebrando e os pés se queimando em brasa. Ô negócio bom! Sou nordestina. Admiro e me emociono com a minha arte, com o improviso  do poeta popular, com a beleza da banda de pífanos, com o colorido do pastoril, com a pegada forte do côco-de-roda, com a alegria da quadrilha junina. O artista nordestino é um herói, e nos cordéis do tempo se registra a sua história.

Sou nordestina. E não existe música mais bonita para meus ouvidos do que a tocada por São Pedro, quando ele se invoca e mete a mãozona nas zabumbas lá do céu, fazendo uma trovoada bonita que se alastra pelo Sertão, clareando o mundo e inundando de esperança o coração do matuto. A chuva é bendita.

Sou nordestina. Sou apaixonada pela minha terra, pela minha cultura, pelos meus costumes, pela minha arte, pela minha gente. Só não sou  apaixonada por uma pequena parcela dessa mesma gente que se enche de poderes e promete resolver os problemas de seu povo, mentindo, enganando, ludibriando, apostando no analfabetismo de quem lhe pôs no poder, tirando proveito da seca e da miséria para continuar enchendo os próprios bolsos de dinheiro.

 Mas, apesar de tudo, eu ainda sou nordestina, e tenho orgulho disso.

Não me envergonho da minha história, não disfarço o meu sotaque, não escondo as minhas origens. Eu sou tudo o que escrevi, sou a dor e a alegria dessa terra. E tenho pena, muita pena, dos tantos nordestinos que vejo por aí, imitando chiados e fechando vogais, envergonhados de  sua nordestinidade. Para eles, ofereço estas linhas.

Sheila Raposo é jornalista, nasceu em Monteiro no sertão do Cariri da Paraíba.

8 comentários:

JERDIVAN NOBREGA DE ARAUJO disse...

vixe maria! Me arripiou os pelos da vasoura de agave. Ser nordestino é um privilegio de poucos.

Glória disse...

Comendo tanto doce, desde criança, no mínimo é diabética.

Doutor Saúde disse...

Não esquecer de fazer exames para ver como estão as taxas de triglicerides e colesterol !!!

José de Freitas disse...

Hugo - essa galera não perdôa mesmo. A menina Sheila goza de excelente saúde, não devendo estar preocupada com taxa nenhuma. Prefiro elogiar o texto e parabenizá-la por mostrar a cara e dizer o que os políticos "come quietos", geralmente não dizem !!!

Edvaldo Soares disse...

Hugo Caldas: Esse artigo, escrito pela Jornalista Sheila Raposo, levou-me a um passado distante, quando passava minhas férias escolares na Fazenda Serrote Agudo, no município de Sumé-PB. A Fazenda Serrote Agudo foi tema de uma composição do poeta Zé Marcolino, gravada por Luiz Gonzaga. Viva o Nordeste e salve, salve Sheila. Grato pela publicação.

Márcia Barcellos da Cunha disse...

Sheila,

Parabéns! Achei lindo seu texto! Me fez recordar minha avó materna que era de PILAR, JOÃO PESSOA, PB. Ela era apaixonada pelo NORDESTE!!!! Tenho vários primos nordestinos e tbém eu me orgulho desse fato. Grande abraço. Márcia

Jorge Duarte disse...

Para a leitora "Glória" e o Dr. "Saúdde". OK,pede pra cagar e sai!.
Jorge Duarte.

Júlio Menezes disse...

Liga pra isso não, Jorge. Mantenhamos a calma e serenidade, evitando desta forma escrevermos impropérios, que, certamente entristecem o nosso Hugo e a nós próprios. Fiquemos com os comentários concisos de José de Freitas, Edvaldo Soares e Dona Márcia. Finalizo, dizendo que apesar de não ser nordestino, gostei bastante do texto.