sexta-feira, janeiro 10, 2014

Crime desmaterializado

Plínio Palhano

Costumo sempre viajar ao interior do Estado, mais pela gentileza das pessoas e por causa das belas paisagens. Em uma oportunidade encontrei um amigo. Desabafou-me que sofreu um atentado há algum tempo. Portando uma arma branca, o algoz, seu próprio irmão, avançou sobre ele com a intenção de matá-lo, não consolidando o intento delituoso por circunstâncias alheias à sua vontade, inclusive, com os gritos de sua mãe, idosa, segurando-lhe a mão, suplicando-lhe que não praticasse o crime.


Para preservar a vida, deu parte na delegacia local. O inquérito se estabelece. O delegado viu indícios como crime de tentativa de homicídio, proporcionando os primeiros passos à história processual da vítima. O algoz apresentou-se. Negou o crime, como quase todo réu. Inventou uma narrativa totalmente diferente. O delegado, experiente, convocou a polícia científica e rastreou o fato, contraditório à historieta do acusado. Concluídos os trabalhos do inquérito, encaminhou ao Ministério Público como tentativa de homicídio por motivos fúteis.


  O promotor de plantão pediu a prisão preventiva do réu, mas o magistrado negou. Ainda era cedo. Nas audiências, um promotor diferente em cada uma delas. Um disse à vítima, quando esta foi lhe pedir orientação, que contratasse um advogado. Outro afirmou que preferia trabalhar sem advogado. E o juiz, com boas intenções, disse-lhe que ele não precisava de advogado, porque existiam excelentes promotores. Apesar da verdade dos fatos, as testemunhas, dois irmãos de ambos — vítima e réu —, simularam, em conluio sórdido com outras, dizendo que não viram a arma do crime, desmaterializando-a do processo – caracterizando-se, assim, um caso raro do fenômeno “paranormal” de desmaterialização – por interesses próprios principalmente, entre outros, para se vingar da vítima, pelo fato da denúncia da real tentativa de homicídio; e afirmaram que a vítima quis prejudicar o réu, por denunciá-lo, defendendo o seu próprio direito à vida. Na prática, constatou-se a intenção de anular o crime e culpar a vítima, que muitas vezes, morta ou viva, é a culpada nos processos penais no Brasil.

Eis a parte das alegações finais técnicas aceleradas de mais um dos promotores atuantes no processo, que, em um momento do texto, confunde o réu com a vítima: a arma do crime não existiu, porque as testemunhas e o réu confirmaram. Portanto, o código penal não o atinge, acreditando que a justiça será plena. Então, o amigo expressou: “Fui vítima três vezes: no atentado, nos falsos testemunhos e nas ações tramadas na clandestinidade. Isto incentivará o algoz a repetir o crime?”

Plínio Palhano é artista plástico

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