A Batalha de Oliveiros

W.J. Solha


Algum tempo após a morte de Roldão, fui à casa dele e de Inês. Ao entrar no alpendre e passar entre as talhas representando Carlos Prestes na Coluna e Marighela nas guerrilhas, senti a presença forte do mano, evocada também pelas avencas fartas, redes, o frescor das samambaias, viveiros com canários, araras e sanhaços. Chega ouço Geraldo Vandré tocando violão lá em baixo, conosco, debaixo das mangueiras, todos nós cantando
                   ”Vem, vamos embora,
                     que esperar não é saber.
                     Quem sabe, faz a hora
                     não espera acontecer!”
“Pobre Roldão – eu penso – Pobre Carlos Magno. Pobre Geraldo Vandré. Pobre de mim.”
Guiado pela criada esquiva, entro no gabinete de meu irmão e me sento numa das hospitaleiras poltronas negras e gordas. Sobre o sofá, na parede, os cartazes - autografados - dos filmes “País de São Saruê”, “Aruanda”, e “Homens do Caranguejo”.
Olho para as várias escalinatas verdes, de samambaias, que oscilam no alpendre ( como delicados móbiles de Calder ), suspensos dos caibros. Na mesinha-de-centro, à  esquerda, um exemplar do recém-lançado Das cores, as Cinzas., de Inês, fazendo peso no Pasquim novo com a entrevista do Paulinho – o Paulo Pontes. Acendo um cigarro, empurro o livro de Inês para um lado, leio uma das declarações grifadas certamente por ela, em que ele diz:
“A realidade brasileira está muito complicada, hoje, daí a ausência de uma saída”.
E há uma revista Veja, aberta sob o Pasquim, também grifada, com Celso Furtado dizendo:
                              Se não existe hoje a possibilidade de entender a
                                crise mundial que aí está, é porque não temos um
                                conhecimento  das mudanças estruturais que ocor-
                                reram na economia mundial.
Tragando a fumaça com avidez, salto os olhos para uma resposta anterior:
                            Assim, se não houver um grande avanço para entender todas essas sociedades humanas atuais, continuaremos a ter grandes dificuldades para identificar os verdadeiros problemas, para formar justas políticas, para organizar e desenvolver movimentos sociais e econômicos nos países o Terceiro Mundo!
“Mas meu deus!”, eu penso, com forte renovação da angústia. “Será que ninguém, então, está sabendo mesmo de nada?”
Pressionando a revista fechada, vou soltando as folhas com o polegar, as propagandas fracionadas passando ligeiras – Volks-City-Shell-Ford-Bosch-Lee - os demônios saltando de minha memória sobre o portão do inferno que me barra a passagem para o entendimento e, do entendimento,  para a ação.
           Baixo os cotovelos para os joelhos, meus dedos entram duros entre meus cabelos, e é como Inês – loura, de luto... e linda!  - me vê ao entrar.
Ela chega do banho, trazendo já a sólida lagoa de metal da salva de prata com as ilhas: bule, xícaras e o açucareiro, cheios de brilhos e de reflexos de imagens móveis
- Bom dia, Oliveiros – ela me diz, oferecendo o rosto que eu beijo sentindo-lhe o frescor, perfume e a maciez. A alça esquerda de seu vestido desce no que ela se baixa para depositar a bandeja  sobre o Pasquim e a Veja e eu me delicio com a visão dos seus seios inteiros, pelo decote. Sinto uma imediata ereção, que cresce ainda mais violenta quando percebo que Inês olha para o lance e se ergue corrigindo a alça, tranquila, sentando-se em seguida à minha frente.
- Tudo bem com você? – diz.
- Vou levando. E com você?
Sorri triste e faz um meneio duvidoso com a cabeça. Entreolhamo-nos em silêncio, intensamente, examinando a temperatura, a claridade íntima e as obscuridades um do outro novamente... como fazíamos antes de Roldão...
Mudo o cigarro para a mão esquerda e tenho medo de tirar o açúcar, manejar a colherinha. Estendo cautelosamente as mãos entre os objetos da bandeja, destapando o açucareiro e carregando dele três dunazinhas alvas que, com meu tremor, se espalham um pouco. Digo, com voz embaçada, “Ô, perdão”,e pigarreio.
Ela sorri.
Servimo-nos calados, eu tenso, sem saber o que fazer nem dizer, a cinza de meu cigarro se alongando e acabando por cair, esfacelando-se sem rumor, no chão. Constrangido, esmago o cigarro no cinzeiro, digo:
- Andei lendo “Das Cores, as Cinzas”...
- E...?
- Gostei, gostei.
Ela me olha nos olhos:
- Mas...
Sorrio, triste:
- Não está um pouco... reacionário?...
Ela cruza as pernas e os braços e eu a contemplo em êxtase, com desejo, remorso intensos.
- Olha – Inês começa, devagar – Aconteceu que de repente me vi só, mais só do que nunca, muito isolada... Meus amigos desapareceram. Até você. Nunca mais me procurou. Por outro lado, fui obrigada a uma imobilidade quase completa durante a gravidez, pois quase aborto com a notícia da morte de Roldão e da derrota da guerrilha, o médico a me controlar à custa de sedativos fortes...
Reparo na boca, nos dentes perfeitos, nos lábios dela. Me lembro da visão de seus seios quando se baixou com a salva.
-... E comecei a pensar – ela prossegue – A pensar muito... principalmente em torno de minha gestação. É incrível, sabe, quando se principia a perceber... a compreender que as células estão se multiplicando dentro da gente, uma vidazinha crescendo numa velocidade espantosa e já com um cronograma estupidamente complexo e preciso a ser cumprido. É uma sensação estranha, essa, quando se conclui que nos tornamos apenas... portadores, alimento, abrigo, meros instrumentos de um fenômeno que continua assombroso, apesar de estar superlotando a Terra. E a impressão que isso me foi deixando... é a de que toda essa parafernália, todos esses... bilhões de anos e de acasos que os evolucionistas calculam para o surgimento do Homem e suas transformações... são apenas uma porção de tolices, pois algo que se revela tão minuciosamente preciso quanto a Natureza ao engendrar um ser humano... não iria, acredito, precisar de tanto tempo, de tantas tentativas e erros... para conseguir... fosse o que fosse...
Eu sinto a garganta doer olhando Inês tão linda, tão só, tão deprimida, tão... perto... e vou dizer alguma coisa qualquer, como “Eu amo você”, ou  “Olha, eu não aguento mais”, porém ela volta a falar e eu me calo.
- Bem... – confessa – com a gravidez me descobri reduzida a uma atitude...  muito semelhante à sua.
Minha expressão lhe diz “Qual atitude?”
- Tornei-me em mais expectadora angustiada descobrindo  que a farândola da História prossegue com a mesma cronologia segura de si que acompanha a formação de um bebê, mesmo quando você não mais toma parte... ativa... dela, mesmo quando você não consegue mais entender absolutamente nada do que ocorre ao seu redor... ou no seu interior.
Baixa os olhos e pisca mais depressa:
- Perdi a minha criança, Oliveiros. A guerrilha, por coincidência, que tinha como símbolo uma mulher grávida... também abortou... Aí eu... aí eu... – ela me olha – assumi a nossa mediocridade, com a noção de que verdadeiramente Os Cães Ladram e a Caravana Passa.
“Mas a minha visão das coisas não é essa”, vou lhe dizer, porém saio à deriva:
- Você sabe alguma coisa... do fim da luta?
A voz dela soa embargada:
- Pouca coisa. Fui informada de que dez mil soldados operaram e estão operando na área,
- Dez mil?!
- Sim.
- Putz!
- Dez mil. Contra cerca de sessenta guerrilheiros. Dos quais uns cinquenta foram mortos. O resto se dispersou pela floresta ou foi preso. O João Amazonas está na Albânia. O Ângelo Arroyo, que integrava a Comissão Militar do grupo, foi morto num cerco a um aparelho do Partido, no Alto da Lapa, em São Paulo. O João Carlos Haas morreu na mata. O Oswaldão foi fuzilado. Suely morreu estraçalhada por mais de cem balas.
- Como Maria Bonita...  E o exército?
           - Diz o Partido que houve duzentas baixas. O exército admite sessenta. E está fazendo uma reforma-agrariazinha por lá... distribuindo terras aos camponeses que deduraram...
            E, sem quê nem mais, Inês prorrompe num choro louco, que me assusta.
            - Ô, pelo amor de deus – eu lhe digo. – Calma, calma – e estendo a mão para tocá-la, mas, ao sentir nova ereção, retrocedo. Inês recosta-se na poltrona, soprando forte, nervosa. Depois corrige a mecha de cabelos na testa e sorri contrafeita:
            - Isso passa....
            - ... Passa – eu digo... e me levanto... batendo em retirada enquanto é tempo,  no que disfarçadamente corrijo o falo duro. Porém ela o percebe e eu percebo isso, e ela percebe que eu percebo que ela o percebe. Inescrupulosa, inextrincável... ergue-se também. “Não vá agora, Oliveiros”, e estende a mão para a mão que lhe estendo me despedindo. De repente diz “Sssssh, ai que gostoso!”
            - O que?
            - Sua mão! – e prossegue, murmurando inesperada, inexata, inextricável. – Como é gostoso segurar sua mão!...
            Meu pênis dói, de tão duro. Inês recua, os dentes mordendo o lábios inferior, olhando-me inexcedível, inesquecível, suplicante. E ela se escoraria numa parede, se a houvesse ali. Súbito, para minha incomensurável surpresa ( chega vejo flores na selva oscura) atira-se nos meus braços, colando a boca na minha, respiração acesa, o corpo tremendo. Eu a abraço com força, o volume do sexo rijo encaixado no monte de vênus dela, e sinto, quase imediatamente, Inês estremecer... gozando!
            “Céus, eu não posso falhar!” – eu me alerto, alarmado. De Eros a erros e de efeito a defeito, há um milímicron somente... e eu não posso vacilar agora!
            Ela se arrefece, mas - sem despregar os lábios dos meus, sem despregar o corpo inteiro do meu,  revira os olhos, lânguida - e logo volta a intensificar a respiração e a gemer... e novamente goza, mesmo com nosso contato embrulhado em tanto pano. Geme “Ô meu amor...”, e me beija de novo, eu percorrendo seu corpo todo com as mãos, a direita parando nas nádegas e apertando-as contra mim, a esquerda buscando e encontrando o seio direito, no que ela... goza pela terceira vez.
            Continuamos, no entanto, no mesmo arrocho de cipós em cerca antiga, na mesma sensação louca de bocas e línguas, corpos e mãos, eu com a mente como que caindo num abismo, mas pensando que o interior do sexo dela esfaimadamente quer se aplacar e se encher com o meu. Percebo-a, alucinado e lúcido, gozar pela quarta vez, inexaurível, inextinguível, inextirpável. Introduzo a perna direita entre suas coxas e ouço-a murmurar algo incompreensível e sinto-a, em seguida, começar a me desabotoar a camisa com as unhas longas trabalhando depressa e a me desnudar um ombro. “Vamos – ela me sussurra – tire a roupa logo!” E eu a vejo recuar até a porta e fechá-la a chave. No momento em que desensaco a camisa, leio - de relance - um dos três cartazes de propaganda que decoram a outra parede, ao fundo do gabinete bem organizado de Roldão: “Gradiente, uma empresa IGB. O resto é silêncio”. Olho para o outro: “Biscoito é Tostines. O resto é bolacha”. E para o terceiro: “Desinfetante é Lysoform. O resto é perfumaria”. “Roldão”, compreendo num relâmpago. “E eu”. Nossa tragédia reduzida àquilo por ela. Olho para Inês, que deixa a roupa negra cair de vez.      E seu corpo nu
 – visto agora em sua plenitude de mulher – me deixa em êxtase (“Meu deus!”) e vejo que meu deslumbramento a excita mais ainda. Também me incita seu satisfeito e ávido olhar no meu membro, que de repente escapa em riste do enrosco das calças e da cueca, que desço juntas.
      Tocamo-nos, eu sem poder dar crédito ao que me acontece. Osculamo-nos. A pele de pétala, de Inês, me leva às nuvens. Acariciamo-nos como dois escultores, modeladores, torneando-nos sem fala. Olhamo-nos profundamente nos olhos, nas almas.
      Que iluminação é essa que a desfoca, suave, e produz uma boca tão real com seus dentes e a língua no beijo, contato com seios, ossos do corpo, coxas nuas?
      Nosso abraço é um desvario, delírio, eu lhe cheirando o rosto, mordendo-lhe de leve o pescoço, mordiscando-lhe o bico do seio esquerdo,  eriçado e lindo. E novamente a beijo na boca, num turbilhão que leva Inês a rolar o corpo  diante do meu até  me dar as costas e sentir meu pênis duro em pé entre suas nádegas, minha mão esquerda num de seus seios, a direita alisando-lhe as paisagens desertas mas sensíveis, corpo abaixo, até um de meus dedos se imiscuir entre as polpas de seu sexo, tocar-lhe o centro da loucura e ir mais adiante, entrar-lhe no alojamento molhado com moles interiores, eu beijando-lhe a nuca, roçando-lhe os pelos das costas com os lábios e com a respiração, voltando, em seguida, para a boca que Inês me oferece com o rosto virado, gemendo. E vem o seu quinto orgasmo. Aí eu a vejo escorregar para baixo, voltando-se para mim, até se ajoelhar em adoração estrábica diante de meu falo que lateja em pé. Parado, assisto-a beijando-me o membro, fascinada, as mãos acariciando-me suavemente os testículos. E vejo-a envolver-me a glande com a língua, o que me faz estirar o corpo para trás e respirar fundo, Inês me sorvendo mais e mais o pênis e finalmente abocanhando-o tanto quanto pode, os lábios evitando o choque dos dentes em minha carne. Minhas mãos procuram apoio, no que perco o senso da realidade. Com a esquerda, forço a cabeça de Inês para mim, numa agonia de que me engula mais. Minhas coxas se retesam dolorosamente e o ventre se contrai no que Inês me chupa com ardor. A carícia crescente, o prazer aumentando, a visão da boca de Inês com meu membro dentro dela, a visão do seu corpo nu, os peitos lindos, aqui a meus pés, me fazem perceber que vou gozar, que vou gozar muito, que vou sentir o jato de esperma espirrar, mas me lembro do desastre de minha adolescência, da primeira-mulher-no-lugar-de-Inês-que-tive, a ejaculação precoce frustrante e, “meu deus, vou estragar este encontro único, se gozar já!” E é por isso que nesse instante, na aflição por vencer, por vencê-la, procuro criar uma situação mental tão forte que me tire do real.E : porra!: de repente estou com uma espada erguida na mão e berrando: “Dis-parar!!!”. E... “vejo”... a surriada de nossa arcabuzaria  fulminando com ódio centenas de flamengos apanhados de surpresa a dez metros de mim, nos Guararapes. Segue-se algo mais poderoso ainda: é o reboar das caixas e o clangor das trombetas e a visão do inumerável saltar no espaço – de negros, brancos, mulatos, mamelucos e índios, toda a tropa brasílica fumaçando no estrondo, desabando sobre os batavos como Iguaçu na Garganta do Diabo!, eu... a “ver”... os ... neerlandeses, após o susto e depois do tiro atordoado, de mosquete, desandando a correr ou a se atirar ao chão, ou a se voltar ouriçados de alabardas, lanças, picas, punhais em riste, eu irrompendo à frente, a cavalo, com meu terço de homens – o mais poderoso das forças brasileiras – investindo no vale, enquanto o índio Camarão assalta da ala esquerda, vindo do paul, terrível, e o negro Henrique Dias surge da direita, esgoelando “À espaaada!!!”
         Eu me deito, então, em cima de Inês, no sofá, e lhe beijo a boca com tara, e ela me segura o membro duro e o guia até o centro de seu ser, no instante em que dobra os joelhos e escancara as coxas. Ela sente, enfim, com volúpia, meu pênis a penetrá-la  rijo e quente,  corpo a dentro,  e eu sinto que entro nela com justeza e vigor, já meio grogue, drogado, até que recuo muito, provocando um rugido em sua garganta, Inês revira os olhos, e lhe provoco um sufoco no retorno de todo esse prazer avassalador na reintrodução que faço nela até a boca de seu útero. A delícia não tem limite e o desespero pelo crescimento sempre maior da sensação me faz ansiar pelo gozo derradeiro e insuportável e, ao mesmo tempo, querer retardá-lo indefinidamente.
        Recuo muito e a penetro num arranco. Volto a recuar muito e a repenetro, dominador. Ela começa a gemer cada vez mais alto, abrindo ainda mais as pernas para receber ainda mais meu pênis, sentir meus testículos tocando-a fora do sexo. E, no auge desse crescendo, num recuo, tiro-lhe de repente o membro todo de dentro para segurar a ejaculação, com o que Inês implora “Nãonãonãonão!” e chora “Nããããao!”, como criança a que lhe tiram o peito da boca faminta. E então a penetro de vez e ela desanda a falar e a falar e a falar e a gozar “ai meu amor, meu amor, meu amor!”, e eu fugindo da entrega, me remetendo ao galope no caos, ouvindo tiros a zunir ao meu redor, eu avançando entre desabrochos de dezenas de explosões no terreno,  estridências de chapas de armaduras tangendo em broquéis de bronze, rodelas de escudos  se encontrando com lâminas pesadas, eu descarregando todo meu rancor através da espada, estilhaçando hastes, rasgando ferros, fazendo se crisparem mãos com gritos agudos de terror.
        Ouço as gaitas de fole de som gasguito ripompado pelo repique dos taróis e rufar dos tambores, tocando de um lado, e pífanos  nacionais a tocar e a correr em círculo, em sentido contrário, do outro, tudo formando uma zoada circular universal que percebo  desnortear os coronéis van Elts, Hautyn, Keervaen, Brinck, van der Brande, Oltz e Hendrik Haus, enquanto acelero os movimentos  de penetração e recuo em Inês, “vendo” a loucura misérima, suja, descalça e rota de nossas tropas surgindo das brechas e brenhas, de dentro d´água e de cima das árvores, das pedras e dos buracos, das furnas e dos pesadelos, de frente, de trás, das fumaças, numa rapidez alucinada e alucinante, incontrolável, reforçando a guerra  brasílica, fulminando os holandeses.
       Imagem mais delirante ainda: a de van Schkoppe galopando ladeira abaixo, para dentro do caldeirão fervente, gritando “Artillerie!!!”, “Artillerie!!!”, e eu próprio a avançar em sua  direção, ceifando e talando, vendo e ouvindo os ribombos roucos dos canhões a disparar as fornalhas que sacodem oitizeiros gigantescos, que tombam rangendo, ou erguendo acolá rojos d´água, van Elts tentando encostar às carreiras o seu cavalo castanho ao puro-sangue branco de seu general, berrando “Os canhões nada podem contra bandos dispersos, Excelência!!!”, ao que van Schkoppe ruge “Continue atirando!!!”
       Vejo van Elts puxar os freios do ginete e ficar para trás, vermelho, os olhos esbugalhados, gritando puto: “Em que direção?”
       Schkoppe para mais adiante, num alto entre moitas e rochas, abismado com a batalha infernal. Esculhamba-nos, despeitado:
       - Selvagens, bárbaros, desesperados!!!
       Nesse momento sinto que Inês, imóvel em baixo de mim, move as sobrancelhas como quem volta de uma anestesia ou de um sono profundo. Aos poucos abre os olhos dopados, que se encontram com os meus. Sorrio, sinto o aperto de sua vagina no meu falo, sinto o pênis engrossar-se e endurecer-se mais, e vejo Inês recomeçando a foder, a foder devagar, fazendo-me mais espectador de sua lindíssima e gostosa feminilidade do que alguém que procura o próprio gozo. Eu a forço a rolar para cima de meu corpo e a faço sentar-se fincada no meu sexo. Sem me mover, assisto ao seu galope infrene, bebendo-lhe as expressões de loucura, a beleza  do corpo nu, seus seios, a vagina arrochada subindo e descendo pela coluna de meu mastro. Olho e ouço Inês lamuriar-se, percebo o terremoto vir de dentro do centro do meu ser... e minha fúria cresce. Eu é quem monto agora, a cavalo, arranco a borduna de um tapuya debaixo de mim e esporeio, já instrumentalizado com a brutalidade compatível com meu furor! Ergo a arma contra o céu, desabo-a e, com ela, arrebento o crânio de Hamel. Desencravo-a da cabeça dele e rodo-a no ar, produzindo um ronco-sibilo que, ao rasar, arranca a carne da cara de Gideon Herckmans e se afunda na frente do tórax de Harlem Bullestrate, que tomba morto. Cavalgando de lado, com maestria, piso em agonizantes, vendo Mathias de Ridder  ter o estômago esmagado, Gerard von Dortmont ter as costelas desarmadas, Adriaen der Hagen dando uma golfada de sangue.
        O Coronel van Elts, bem à minha frente, perdido na trama de corre-corres em todas as direções, vê repentinamente João Fernandes Vieira – o nosso “Governador da Liberdade Divina” – no momento em que o mulato rico e descalço mete o broquel na cara de Franciscus Plante, atordoando-o, enquanto que, com a direita, arranca a lâmina fina encravada no peito de Marten Meundersz. Van Elts faz a montaria girar, passa a espada para a esquerda e saca a pistola com a direita. . Ao apontar para a cabeça de Vieira, surjo-lhe por diante, todo sujo e enfolhado, disparando-lhe a eclosão que o faz se sentir inexplicavelmente a pé, descendo uma escadaria, bêbado. Os degraus sanfoneiam nos seus passos – tudo mole e fole – e o vejo se afundando na morte, enquanto Inês goza de novo como uma desesperada, afrouxando o corpo, os cabelos louros tombando por cima de meu corpo.
        Rolo para cima das costas dela, puxo-lhe o corpo para que fique apoiada de joelhos, seguro-a pelos quadris ( a visão é maravilhosa), introduzo-lhe lentamente o membro de novo, por trás. Inês move as nádegas, dando e recebendo um prazer jamais sentido, no momento em que todo o Boqueirão, todo o Guararapes à minha volta é o Brasil, é o rumor portentoso de uma nação terrífica, pois a batalha se torna... total, do alto aos pântanos, tudo conturbado, o espaço cheio de fumaçarões, estrondos enormes, roncos, rinchos, berros e vultos, assassinatos inumanos, armas estrugindo.  O sol faz os metais cintilarem, as sombras das nuvens e a luz tornam transparentes as fumaças e a poeira, cheias de visões, onde um mar de duelos incríveis se mistura a sombras de golpes que tangem  como sinos e como bigornas em pedras, ferraduras retinindo nas rochas, cavalos subindo nos ombros dos escombros e encalhes de calhaus sobre os holandeses, a infantaria brasiliana seguindo-os, digladiando num farnesim de degolas, machadadas, chuçadas, espantos. Agarro-me ao corpo de Inês e vejo mulheres, mulheres, centenas de mulheres, milhares de putas no caos, sumindo em clarões vermelhos que se fecham negros, em chuvas de fogo. Vejo éguas se desmantelando em roncos surdos, com os olhões aglobados. Vejo éguas rolando na ribanceira e vejo uma delas arrastando as vísceras entre as patas. Vejo a fuligem avançar em minha direção, enquanto galopo, e revolver-se e subir, clareando a visão das bandeiras flamengas cheias ao vento, mas de repente emagrecidas e rasgadas – algumas prosseguindo feito espectros da glória das Províncias Unidas e da Compagnie – tremulando entre tormentos e terrores. Vejo Inês gemendo para entrar em novo orgasmo. Com pavor terrível de também gozar antes do final da batalha, consigo... ver o negro Jorge Bizerra dando as costas ao inimigo para fugir e sua nuca engolindo um feixe de chumbos, sua cara explodindo à frente, espalhando-os. Inês sussurra alguma coisa, remexendo as nádegas e se retesando, mas o que eu vejo é a cabeça da puta Maria Roothaer crescer vermelha e se arrebentar entre fumaças.
         Inês tem novo orgasmo. E depois ela me entrevê, grata, levantar-me do sofá. Eu a vejo redespertar de bruços e olhar-me, olhar-me nos olhos, ombros, meus braços, cintura... e demorar-se extasiada  no membro duro. Sinto que finalmente a venci. Mas ela se volta de pernas abertas, virando para a mim a abertura faminta, me pede: “Pelo amor de deus, meu amor, vem me foder mais, vem, pelo amor de deus!”
        Permaneço imóvel, de pé, respirando forte, a cabeça vazia, e ela se ergue, puxa-me para junto do sofá, sobe no assento do móvel e, por si mesma, introduz-se com meu pênis. Abraçando-me também com as pernas, logo ela trepa como louca e eu a ergo e a beijo na boca, encravado na sua vagina. Tiro-a do móvel e encosto-a na parede. Retiro e reintroduzo o membro, com as mãos apertando-lhe as nádegas, sentindo meu cilindro passar e repassar entre meus dedos e entrar nela, os testículos batendo na sua vulva negra. Percebendo que não vou suportar mais reter o próprio gozo desta vez, deito-a no sofá e, de espectador, entrego-me todo ao devaneio da ação em si. Introduzo em Inês toda a minha gana, rugindo, trincando os dentes, e agora vou esporrar, santo deus, vou esporrar, mas tranco os olhos, dominado pela cena terrível: o Coronel Haus fazendo a cabeça do negro Inácio Rebelo urrar e voar de súbito silenciosa. Mas Antonio Timbira empurra o neerlandês para a frente, apruma a clavina com urgência em direção de sua cara e lhe mete o ronco da roqueira em cheio no rosto.
         Não consigo evitar a visão do povo do Recife se espalhando em pânico. Não consigo evitar a visão das irmãs Cornélia, Sáskya e Dymphna, os seus meninos de quatro e cinco anos sozinhos na trilha dessa avançada. Elas berram “Willen! Niklaus!”, e correm derrubando tabuleiros de brotes, cocos, milho assado e roletes de cana das vendeiras, agarram os garotos e fogem. Vejo, porém, que Sáskya ergue seu filho pelos sovacos, gira-o no ar para atirá-lo à distância, querendo livrá-lo do massacre, mas os dois são atropelados e vejo que emboloam feito trapos entre as patas dos animais. “Goza comigo!”, Inês me pede, finalmente, e recuo e arremeto, recuo e arremeto. Percebendo-a com os pés erguidos, toda escancarada, recebendo-me com avidez, à espera do esperma, arremeto rugindo: torço a cabeça para o lado, numa dor terrível, sem conseguir livrar-me da batalha. Penso em pensar noutra coisa, mas, nesse momento, numa contração torturante, jorro, ejaculo com força e recuo de novo, dentes rangendo, verrumando-a  mais uma vez para lhe esguichar  mais esperma, no que a vejo desmaiar, tombando fulminada, suando, caindo como cai um corpo morto.
         E recuo de novo, e de novo arremeto rugindo, num desvario incontrolável, ouço inesperadamente o berro “Para o Boqueirão!!!”, e vejo, meu deus, eu vejo o General Francisco Barreto passar lá embaixo, gritando a galope, no vale:
        - O General Sckoppe quer tomar o Boqueirão!!!
        Quem, diabo, quer ainda os braços da Vênus de Milo ou o resto da Sinfonia Inacabada? No entanto me sinto de novo com o corpo num casco duro – de tartaruga, rinoceronte, de tatu – esporeio de novo, ouvindo o alarma, e recomeço a remover o centro do meu universo para o Boqueirão, desesperadamente! Vejo, de súbito, o porta-estandarte louro vir a cavalo, em fuga, com o magnífico tafetá carmesim-azul da bandeira flamenga tremulando ao vento e, com uma precisão estúpida, vejo que Vieira, ao meu lado, guina a montaria quase tombando para a direita, como se fosse despencar, e estira  o estilete de luz da lâmina fina para o coração do alferes van de Sriegel. A extrema afiada aponta vermelho-brilhante às costas do rapaz e Vieira larga a espada, para pegar no ar o estandarte que o outro solta ao morrer, exibindo-o triunfante. O General Barreto gargalha eufórico, o sol glorifica as armas das Províncias  Unidas e da Companhia das Índias Ocidentais – o leão rompante ruge coroado no campo carmesim-azul – pegando fogo em mãos brasileiras.
        Penetro de novo, esporrando no corpo desfalecido de Inês, e a fúria  pelo crescimento da vitória me faz adiantar-me no cavalo negro até o animal louro, de Vieira, e passar a abrir-lhe passagem com a borduna, rumo ao Boqueirão, desabando-a, rosnando, na cabeça  do francês Roger du Gardin, trucidando-o, erguendo-a e massacrando o infante Jean de Cerceau, reerguendo-a e afundando-a no crânio de Pieter Jansz Beck, no cérebro de Mathias Bass, no esterno de Joris Adriaenszoon Bresck, na cabeça de Reynier Voss, descalafetando a boca e mutilando Karel Fabritius, desombrando John Burne-Jones, escangalhando Wolf Koberger e Hans Meegeren, rachando as têmporas  de Heinrich von Granien e de Pieter Friedrich.
        Eu me contraio e ejaculo mais uma vez, quando vejo, como num pesadelo, um holandês de Haarlen – Frans de Bray – voltando-se e assistindo à minha avançada monstruosa, precedendo a de Vieira com o troféu de sua pátria. Frans ergue o mosquete, apoia  a arma pesada na forquilha e faz mira em mim. Vejo que é o meu fim. E estou pronto para me ver e me sentir recebendo a disparo, quando escuto, como se eu fosse o Frans, o sibilar da espada de Felipe Camarão por baixo, numa fina e afiada horizontal, e olho para o ventre, aterrorizado, sem crer: vejo a boca do abdome  se escancarando, os intestinos a se derramarem, e caio de joelhos, largando a arma de fogo, procurando recolhê-los, angustiado. Tombo de borco, a cabeça batendo no piso lavado e xadrez e vejo uma sala com a porta aberta que dá para outra sala com a porta aberta para outra sala, onde uma velha – minha mãe – de costas, com a touca imaculadamente branca, sapatos de pau, está bordando junto à porta que dá para a calçada, onde brincam duas meninas, minhas irmãs. Os rios do mapa que representa com extrema precisão o Höllandish-Brasilien – onde estou – sangram na parede. A velha se volta e se ergue, derrubando o bastidor e as linhas coloridas, leva as mãos ao rosto apavorado, e grita “Frans!”, no que esfacelo com a borduna a face de Paul van  der Veere, que Vieira, vindo em seguida, vê rolar com os miolos se desmilinguindo entre os cabelos. Nessa distração, desvia-se do vulto de Hendrick Hoogstraten, mas não da quina de seu golpe, no gorjal e no elmo.
         - Bandeira! A bandeira!!! - ele berra, com fumaças vindo-lhe ao encontro e passando para trás como almas de pólvora. Inês desperta do desmaio, ergue a cabeça e se vê nua, me vê datilografando na máquina de Roldão, numa pressa extraordinária, também nu. Levanta-se, rodeia-me e acompanha a metralha datilográfica, lendo por cima de meu ombro que “freio o cavalo e o torço para trás, urgente, e logo sou eu que estugo a galopada para a frente, com a bandeira na mão, minha passagem fechada abruptamente pelo Usserl, Edmundsen, Brandt, Hartman, Velius, Bor, de Groot, Preuss e van Brakel. Avançam todos de uma só vez em minha direção, todos ouriçados de facas, espadas, alabardas e alfanjes. No último instante, porém, dou um grito ao cavalo e o meu colosso de músculos negros salta sobre todos os gringos que se encolhem à minha frente, até que um tiro preciso de mosquete, deflagrado por Bartholomeu Heines, despede a pelourada certeira que jugula o animal. A criatura gira comigo sobre a própria cabeça, no impulso avante, vou ao espaço com a bandeira holandesa na mão, o cavalo desabando o corpanzil já morto em cima dos cadáveres de Huybrech Kool e Jean de Beaumont, eu acabando por cair mais adiante, de nuca no chão, as pernas no ar, sem o estandarte, que se projeta lá para a frente”.
       - Quê loucura! – Inês murmura, maravilhada. – Como é que você consegue isso, inventar... ou se lembrar desse nomes todos?
        “Rolo, zonzo, apegando-me à touceira sangrenta da cabeça solta de Cornelius Henrich, os pés tombando n´água, meu rosto ralando-se nos pedregulhos.”
         - “Ôuh – consigo dizer - :a bandeira!”
        “E me ergo desnorteado, no olho da tormenta, avisto o pano carmesim-azul caindo lentamente sobre o ginete negro, e minha ânsia por recuperá-lo é a de todos os flamengos ao meu redor, cujas mãos se estendem numa voracidade louca.  Saco a faca e avanço rumo ao troféu, o corpo agarrado por todos os lados, minha fúria ingente fazendo-me rasgar a boca de Rasemberg até à orelha direita, golpear van Brakel à esquerda, na garganta, e matar Bor com uma arremetida direta no coração. Depois me vejo de posse do estandarte, com o Tenente Domingos de Brito apeando ao meu lado e gritando, rindo:
      - Meu cavalo é vosso, Excelência!”
      - E quem é você nessa história? – Inês me pergunta.
      “Monto exatamente no instante em que a mais incomensurável explosão me torna surdo! Fascinado pelo terror, vejo no solo, deitado com a cara para o céu, o tenente que acabara de me ceder a montaria, o peito violentamente aberto, o órgão da vida à mostra, batendo acelerado e robusto entre as costelas brancas partidas”.
       - Meu Deus! – Inês diz.
       “- Companheiro! – berro ao tenente, emocionado, ao que vejo o coração dele bater ainda mais depressa – Nós venceeemos!!!”






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